A palavra Deus, para mim, é nada mais que a expressão e produto da fraqueza humana; a Bíblia, uma coleção de lendas honradas, mas ainda assim primitivas, que são bastante infantis.

— Albert Einstein

quinta-feira, 28 de abril de 2011

O Livre arbítrio



livre-arbítrio s.m. possibilidade de decidir, escolher em função da própria vontade, isenta de qualquer condicionamento, motivo ou causa determinante.”
Do dicionário Houaiss (uáis)

Sim, é isso mesmo que você está pensando. Aquele papo de que “Deus te deu o livre-arbítrio” e que, por conta disso, há tanto mal no mundo, porque, ora, o homem escolheu desviar-se do caminho e rejeitou a salvação… Sim, é tudo balela também. Mais um artifício idiota — dessa vez, semântico — para enganar uma multidão de tolos que não sabe o que significa “livre-arbítrio”, muito menos “semântica”.
Se você é alérgico à lactose e eu te ofereço um copo de leite e um copo de suco de tamarindo, você não vai poder usufruir do seu livre-arbítrio, porque não poderá dizer que “escolheu” beber o suco de tamarindo em vez do leite. Ora, você não poderia escolher o leite, logo, não tinha opção, ou a opção era ilusória para mim, que fui quem te fez a oferta.
Se você é uma adolescente e é abordada por um marginal numa praça deserta, e ele te aponta uma arma dizendo que vai te dar um tiro na cabeça se você não transar ali mesmo com ele, bom, você não vai pensar:

Ai, deixa eu ver… deixo esse cara me estuprar, perco a minha virgindade dessa forma traumática, corro o risco de engravidar desse lixo humano, corro o risco de pegar uma doença mortal, ou reajo, grito com todas as minhas forças e perco minha vida?”

Não, querida, você pode até pensar isso (e que Deus te livre duma situação dessas), mas não estará se valendo de nenhum livre-arbítrio, enquanto estiver se despindo.
Uma mocinha catarinense está na fila para ser santa justamente porque as pessoas acham que ela fez algo totalmente fora do esperado: reagiu.
Claro que sempre haverá consequências em função de uma escolha feita. Se eu te ofereço uma fatia enorme de torta de chocolate e outra, do mesmo tamanho, de torta de maçã, para que você escolha uma delas para comer, você pode escolher uma ou outra, ou apenas pode decidir não comer nenhuma. Em qualquer caso, algo vai resultar dessa sua decisão, mas isso como parte inerente ao objeto da escolha e não ao processo em si.
Você pode estar tentando se decidir entre as faculdades de advocacia ou medicina, e vai ter que arcar com as consequências de uma dessas carreiras. Entretanto, se seu pai advogado lhe disser que não vai lhe ajudar com nada caso você não escolha ser também um advogado, bom, aí você estará sendo coagido. Como ainda estava indeciso, a pressão paterna vai com certeza influenciar sua escolha.
Os religiosos que eu conheço não perdem a chance de isentar o Deus deles da responsabilidade pela minha estadia eterna no Inferno. E se sentem felizes e orgulhosos de si mesmos por terem usado do seu livre-arbítrio e “escolhido” o caminho do Céu.
É. De novo, é isso mesmo que você está pensando. Isso não tem nada a ver com livre-arbítrio. Deus está apontando uma arma para a cabeça de cada um deles no meio de um universo deserto e lhes dizendo baixinho:
Ou você me ama, ou você se fode.”


Jesus Cristo, a versão 2.0 do Deus cristão, em vez de esclarecer as coisas e resolver as panes da versão original, só complicou mais ainda com a sua síndrome de Mestre dos Magos. Por exemplo, ele não revogou a lei Mosaica e, ao mesmo tempo, “resumiu” as vontades divinas em dois mandamentos apenas:
1. Amar a Deus sobre todas as coisas;
2. Amar o próximo como a ti mesmo.
Ah, o Barros por lá numa hora dessas!, que eu tinha deixado o safado de saia justa:
— Ô, seu minino, e aquela história de que a lei antiga não vai perder nem um jota ou til antes que passem céus e terras? Como é que eu vou apedrejar uma pessoa sentindo amor por ela como sinto por mim mesmo, hein?
— Bárbaro, digo, Barros, lembre-se de que muitos serão chamados, mas poucos os escolhidos; e o caminho certo é o caminho estreito, não o largo; e que meu reino não é deste mundo; o dono da casa não sabe a que hora virá o ladrão, nem o Filho sabe, só o Pai. Entendeu?
— Entendi, seu pilantra: tu deve ter fumado todo aquele incenso do Oriente achando que era maconha, não foi?
Mas vê só: mesmo você achando que tudo se resume a apenas essas duas regras básicas, nenhum cristão leva em conta um detalhezinho muito fofo sobre elas: são impossíveis de serem cumpridas.
Hein? Né engraçado? Eu acho. Tu entrou nesse jogo sem querer e agora, pra evitar ser torturado eternamente sem dó nem piedade, vai ter que cumprir duas regras impossíveis de se cumprir.
— Amar a Deus é uma tarefa impossível, Barros? Mas eu amo a Deus!
— Tá. E eu sou um vampiro de 400 anos de idade. Viu? Falar é fácil, depois que a gente aprende.
Você pode amar sua mãe, você pode amar sua filha, porque você é geneticamente programado para isso, mas você não pode amar a Deus, nem se estivesse muito empenhado nisso, e nós dois sabemos que não está. O que você sente por Deus — se é que você sente alguma coisa por Deus — não tem nada a ver com amor. Pode ter a ver com medo, com coação, com babação de ovo, com fingimento, com hipocrisia, com Maria-vai-com-as-outras. Com amor, criança, não.
Você não ama Deus, nem nunca vai amar. Não importa por quanto tempo, por quantas vezes ou pra quantas pessoas você minta o contrário.
E o mandamento diz “sobre todas as coisas” (como se a primeira parte já não fosse impossível sozinha). Acredite em mim: mesmo se — hipoteticamente falando, entenda bem — mesmo se você “amasse” esse Deus, você não seria capaz de amá-lo acima, por exemplo, da sua mãe. Ela, pelo menos, não está planejando nenhuma vingança caso não tenha todo amor que sempre teve por você correspondido.
Você não entende nada de Deus e, se continuar insistindo que cumpre aquele mandamento, vou chegar à conclusão de que não entende nada de amor também.


Você não pode se valer do seu livre-arbítrio para me dar um tiro. Você pode ter vontade de me dar um tiro; você pode me dar um tiro num acesso de cólera, ou numa situação de legítima defesa. Mas não será o seu livre-arbítrio que estará em uso. Ou porque você sabe que não ficará impune se me der um tiro, ou porque você sequer se viu diante de uma situação de escolha.
Livre-arbítrio é a capacidade humana de decidir sem ser “pressionado”; é escolher em função da própria vontade, sem nada que interfira no processo. De um jeito ou de outro.
Ah, então você vem me dizer que, na escolha entre uma daquelas duas fatias de torta, a quantidade de calorias presentes na de chocolate deixaria você “pressionado” a escolher a de maçã? Pode até ser, mas, nesse caso, trata-se de uma pressão autoimposta, do mesmo tipo que faz você decidir comprar uma camisa azul e não vermelha. Dessa ninguém se livra.
Pois bem. Prosseguindo…
Uma coisa que me deixava embananado nas aulas de português da sétima, oitava série, era que sempre existia um monte de regras que só complicavam uma coisa que, sem elas, parecia ser mais fácil de entender. Por exemplo: na aula de gramática eu aprendia a classificar o “sujeito” como “termo essencial da oração”. Só que, mais lá na frente, minha professora precisava me convencer de que havia “orações sem sujeito”. [ -- É o que, tia?!!] Mas o troço não era um “termo essencial”? Como é que… Opa! Se eu começar a despejar minhas frustrações linguísticas aqui a gente perde o fio da meada…
O que eu quero dizer é que a ideia de livre-arbítrio deveria causar essa mesma confusão na cabeça dos que acreditam que um suposto Deus presenteou a humanidade com esse tipo de escolha. Mas (perascaridade!) eles não se sentem confusos! É como se um garotinho cdf de 12 anos não visse problema nenhum em “não precisar” de uma coisa “essencial” para construir uma oração. Como que se prescinde de algo imprescindível??? Eu, juro, não sei.
Minha linda, você não tem livre-arbítrio se Deus chega pra você  e diz:
— Olha, amada, existem dois caminhos a seguir. Só que se tu escolher o largo, tu vai desembocar no Inferno, percebe? E lá haverá pranto e ranger de dentes. Eternamente. Copiou?”
E se você quer me empurrar goela abaixo que está seguindo mesmo o caminho estreito [o que é muito improvável, pois você está de olho mesmo é naquela regra de se arrepender de tudo — só depois —, ser perdoada e entrar no Céu do mesmo jeito] é, no mínimo, por sentir-se coagida, uma vez que a outra opção disponível tem o nome de Inferno.
O livre-arbítrio é o artifício-mor que o cristão usa para desculpar seu Deus de tudo o que há de ruim no mundo, dando crédito a ele apenas pelas coisas boas. Um embuste engenhoso, até certo ponto, mas nem todo mundo é tão estúpido.
— Ah, eu tenho quatro carros de luxo, um apartamento à beira-mar, uma casa no campo, invisto em ações, minha família é perfeita, minha empresa está crescendo 18% ao ano… nossa!! Glória a Deus! Que Deus de Maravilhas! Aleluia!!! Não é lindo, ele? Ai, Deus, te amo! Hein? Crianças morrendo de fome? Onde? É mesmo? Bom, isso é porque o ser humano, valendo-se do seu livre-arbítrio, impôs às sociedades o capitalismo selvagem que desencadeia uma série de desgraças em nível global e… O quê? O efeito estufa? Exato! É o que eu ia dizendo… É o resultado do ser humano, no uso do seu livre-arbítrio, ter instituído a ganância como mola mestra do seu desenvolvimento e a ambição como guia, à custa do seu próprio bem-estar e da sobrevivência das gerações futuras, mesmo com… Hein? A Santa Inquisição? É isso também! O livre-arbítrio, dado por Deus, permite até que a palavra sagrada do Criador seja deturpada, equivocadamente interpretada e usada para fins outros que não a redenção humana…
E por que o crente pensa assim? Por dois motivos. O primeiro. Porque ignora o que seja livre-arbítrio: uma pessoa que tem a punição anunciada de que passará a eternidade sendo torturada (se não cumprir umas tantas regras na Terra) estará sendo coagida. E coação não é sinônimo de livre-arbítrio. O segundo. Porque ele parece querer ignorar que nem toda a humanidade reconhece o seu Deus como o criador do universo, livrando-se, assim, de um contrassenso incômodo: o Deus todo-poderoso, todo-justiça e todo-bondade estaria indiscriminadamente punindo a raça humana, mesmo com uma porcentagem significativa dela não tendo a menor ideia de quem ele é, muito menos do que ele quer.


E repare no título do DVD na imagem acima, do empresário de Deus Silas Malafaia. Será que alguém que realmente acreditasse no Inferno “escolheria” ir para lá? Será que alguém que realmente acreditasse que existe um Céu, arriscaria não ser um dos escolhidos? “Não” é a resposta para essas duas perguntas, e o fato de que, na prática, nenhum cristão faz o que deveria fazer, segundo sua própria religião, para se livrar desse castigo ou para ganhar esse prêmio só prova que nem eles mesmos creem nessa farsa. O livre-arbítrio é só mais um argumento imbecil usado para sustentar a ilusão de que vivem num universo em que Deus existe.

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