livre-arbítrio
s.m. possibilidade de decidir, escolher em função da própria vontade,
isenta de qualquer condicionamento, motivo ou causa determinante.”
Do dicionário Houaiss (uáis)
Sim,
é isso mesmo que você está pensando. Aquele papo de que “Deus te deu o
livre-arbítrio” e que, por conta disso, há tanto mal no mundo, porque,
ora, o homem escolheu desviar-se do caminho e rejeitou a salvação… Sim, é
tudo balela também. Mais um artifício idiota — dessa vez, semântico —
para enganar uma multidão de tolos que não sabe o que significa
“livre-arbítrio”, muito menos “semântica”.
Se
você é alérgico à lactose e eu te ofereço um copo de leite e um copo de
suco de tamarindo, você não vai poder usufruir do seu livre-arbítrio,
porque não poderá dizer que “escolheu” beber o suco de tamarindo em vez
do leite. Ora, você não poderia escolher o leite, logo, não tinha opção,
ou a opção era ilusória para mim, que fui quem te fez a oferta.
Se
você é uma adolescente e é abordada por um marginal numa praça deserta,
e ele te aponta uma arma dizendo que vai te dar um tiro na cabeça se
você não transar ali mesmo com ele, bom, você não vai pensar:
Ai,
deixa eu ver… deixo esse cara me estuprar, perco a minha virgindade
dessa forma traumática, corro o risco de engravidar desse lixo humano,
corro o risco de pegar uma doença mortal, ou reajo, grito com todas as
minhas forças e perco minha vida?”
Não,
querida, você pode até pensar isso (e que Deus te livre duma situação
dessas), mas não estará se valendo de nenhum livre-arbítrio, enquanto
estiver se despindo.
Uma mocinha
catarinense está na fila para ser santa justamente porque as pessoas
acham que ela fez algo totalmente fora do esperado: reagiu.
Claro
que sempre haverá consequências em função de uma escolha feita. Se eu
te ofereço uma fatia enorme de torta de chocolate e outra, do mesmo
tamanho, de torta de maçã, para que você escolha uma delas para comer,
você pode escolher uma ou outra, ou apenas pode decidir não comer
nenhuma. Em qualquer caso, algo vai resultar dessa sua decisão, mas isso
como parte inerente ao objeto da escolha e não ao processo em si.
Você pode
estar tentando se decidir entre as faculdades de advocacia ou medicina,
e vai ter que arcar com as consequências de uma dessas carreiras.
Entretanto, se seu pai advogado lhe disser que não vai lhe ajudar com
nada caso você não escolha ser também um advogado, bom, aí você estará
sendo coagido. Como ainda estava indeciso, a pressão paterna vai com
certeza influenciar sua escolha.
Os
religiosos que eu conheço não perdem a chance de isentar o Deus deles
da responsabilidade pela minha estadia eterna no Inferno. E se sentem
felizes e orgulhosos de si mesmos por terem usado do seu livre-arbítrio e
“escolhido” o caminho do Céu.
É.
De novo, é isso mesmo que você está pensando. Isso não tem nada a ver
com livre-arbítrio. Deus está apontando uma arma para a cabeça de cada
um deles no meio de um universo deserto e lhes dizendo baixinho:
Ou você me ama, ou você se fode.”
Jesus
Cristo, a versão 2.0 do Deus cristão, em vez de esclarecer as coisas e
resolver as panes da versão original, só complicou mais ainda com a sua
síndrome de Mestre dos Magos. Por exemplo, ele não revogou a lei Mosaica
e, ao mesmo tempo, “resumiu” as vontades divinas em dois mandamentos
apenas:
1. Amar a Deus sobre todas as coisas;
2. Amar o próximo como a ti mesmo.
Ah, o Barros por lá numa hora dessas!, que eu tinha deixado o safado de saia justa:
—
Ô, seu minino, e aquela história de que a lei antiga não vai perder nem
um jota ou til antes que passem céus e terras? Como é que eu vou
apedrejar uma pessoa sentindo amor por ela como sinto por mim mesmo,
hein?
—
Bárbaro, digo, Barros, lembre-se de que muitos serão chamados, mas
poucos os escolhidos; e o caminho certo é o caminho estreito, não o
largo; e que meu reino não é deste mundo; o dono da casa não sabe a que
hora virá o ladrão, nem o Filho sabe, só o Pai. Entendeu?
— Entendi, seu pilantra: tu deve ter fumado todo aquele incenso do Oriente achando que era maconha, não foi?
Mas
vê só: mesmo você achando que tudo se resume a apenas essas duas regras
básicas, nenhum cristão leva em conta um detalhezinho muito fofo sobre
elas: são impossíveis de serem cumpridas.
Hein?
Né engraçado? Eu acho. Tu entrou nesse jogo sem querer e agora, pra
evitar ser torturado eternamente sem dó nem piedade, vai ter que cumprir
duas regras impossíveis de se cumprir.
— Amar a Deus é uma tarefa impossível, Barros? Mas eu amo a Deus!
— Tá. E eu sou um vampiro de 400 anos de idade. Viu? Falar é fácil, depois que a gente aprende.
Você pode
amar sua mãe, você pode amar sua filha, porque você é geneticamente
programado para isso, mas você não pode amar a Deus, nem se estivesse
muito empenhado nisso, e nós dois sabemos que não está. O que você sente
por Deus — se é que você sente alguma coisa por Deus — não tem nada a
ver com amor. Pode ter a ver com medo, com coação, com babação de ovo,
com fingimento, com hipocrisia, com Maria-vai-com-as-outras. Com amor,
criança, não.
Você
não ama Deus, nem nunca vai amar. Não importa por quanto tempo, por
quantas vezes ou pra quantas pessoas você minta o contrário.
E
o mandamento diz “sobre todas as coisas” (como se a primeira parte já
não fosse impossível sozinha). Acredite em mim: mesmo se —
hipoteticamente falando, entenda bem — mesmo se você “amasse” esse Deus,
você não seria capaz de amá-lo acima, por exemplo, da sua mãe. Ela,
pelo menos, não está planejando nenhuma vingança caso não tenha todo
amor que sempre teve por você correspondido.
Você não
entende nada de Deus e, se continuar insistindo que cumpre aquele
mandamento, vou chegar à conclusão de que não entende nada de amor
também.
Você
não pode se valer do seu livre-arbítrio para me dar um tiro. Você pode
ter vontade de me dar um tiro; você pode me dar um tiro num acesso de
cólera, ou numa situação de legítima defesa. Mas não será o seu
livre-arbítrio que estará em uso. Ou porque você sabe que não ficará
impune se me der um tiro, ou porque você sequer se viu diante de uma
situação de escolha.
Livre-arbítrio
é a capacidade humana de decidir sem ser “pressionado”; é escolher em
função da própria vontade, sem nada que interfira no processo. De um
jeito ou de outro.
Ah,
então você vem me dizer que, na escolha entre uma daquelas duas fatias
de torta, a quantidade de calorias presentes na de chocolate deixaria
você “pressionado” a escolher a de maçã? Pode até ser, mas, nesse caso,
trata-se de uma pressão autoimposta, do mesmo tipo que faz você decidir
comprar uma camisa azul e não vermelha. Dessa ninguém se livra.
Pois bem. Prosseguindo…
Uma
coisa que me deixava embananado nas aulas de português da sétima,
oitava série, era que sempre existia um monte de regras que só
complicavam uma coisa que, sem elas, parecia ser mais fácil de entender.
Por exemplo: na aula de gramática eu aprendia a classificar o “sujeito”
como “termo essencial da oração”. Só que, mais lá na frente, minha
professora precisava me convencer de que havia “orações sem sujeito”. [ -- É o que, tia?!!]
Mas o troço não era um “termo essencial”? Como é que… Opa! Se eu
começar a despejar minhas frustrações linguísticas aqui a gente perde o
fio da meada…
O
que eu quero dizer é que a ideia de livre-arbítrio deveria causar essa
mesma confusão na cabeça dos que acreditam que um suposto Deus
presenteou a humanidade com esse tipo de escolha. Mas (perascaridade!)
eles não se sentem confusos! É como se um garotinho cdf de 12 anos não
visse problema nenhum em “não precisar” de uma coisa “essencial” para
construir uma oração. Como que se prescinde de algo imprescindível???
Eu, juro, não sei.
Minha linda, você não tem livre-arbítrio se Deus chega pra você e diz:
—
Olha, amada, existem dois caminhos a seguir. Só que se tu escolher o
largo, tu vai desembocar no Inferno, percebe? E lá haverá pranto e
ranger de dentes. Eternamente. Copiou?”
E se você quer me empurrar goela abaixo que está seguindo mesmo o caminho estreito [o
que é muito improvável, pois você está de olho mesmo é naquela regra de
se arrepender de tudo — só depois —, ser perdoada e entrar no Céu do
mesmo jeito] é, no mínimo, por sentir-se coagida, uma vez que a outra opção disponível tem o nome de Inferno.
O
livre-arbítrio é o artifício-mor que o cristão usa para desculpar seu
Deus de tudo o que há de ruim no mundo, dando crédito a ele apenas pelas
coisas boas. Um embuste engenhoso, até certo ponto, mas nem todo mundo é
tão estúpido.
—
Ah, eu tenho quatro carros de luxo, um apartamento à beira-mar, uma
casa no campo, invisto em ações, minha família é perfeita, minha empresa
está crescendo 18% ao ano… nossa!! Glória a Deus! Que Deus de
Maravilhas! Aleluia!!! Não é lindo, ele? Ai, Deus, te amo! Hein?
Crianças morrendo de fome? Onde? É mesmo? Bom, isso é porque o ser
humano, valendo-se do seu livre-arbítrio, impôs às sociedades o
capitalismo selvagem que desencadeia uma série de desgraças em nível
global e… O quê? O efeito estufa? Exato! É o que eu ia dizendo… É o
resultado do ser humano, no uso do seu livre-arbítrio, ter instituído a
ganância como mola mestra do seu desenvolvimento e a ambição como guia, à
custa do seu próprio bem-estar e da sobrevivência das gerações futuras,
mesmo com… Hein? A Santa Inquisição? É isso também! O livre-arbítrio,
dado por Deus, permite até que a palavra sagrada do Criador seja
deturpada, equivocadamente interpretada e usada para fins outros que não
a redenção humana…
E
por que o crente pensa assim? Por dois motivos. O primeiro. Porque
ignora o que seja livre-arbítrio: uma pessoa que tem a punição anunciada
de que passará a eternidade sendo torturada (se não cumprir umas tantas
regras na Terra) estará sendo coagida. E coação não é sinônimo de
livre-arbítrio. O segundo. Porque ele parece querer ignorar que nem toda
a humanidade reconhece o seu Deus como o criador do universo,
livrando-se, assim, de um contrassenso incômodo: o Deus todo-poderoso,
todo-justiça e todo-bondade estaria indiscriminadamente punindo a raça
humana, mesmo com uma porcentagem significativa dela não tendo a menor
ideia de quem ele é, muito menos do que ele quer.
E
repare no título do DVD na imagem acima, do empresário de Deus Silas
Malafaia. Será que alguém que realmente acreditasse no Inferno
“escolheria” ir para lá? Será que alguém que realmente acreditasse que
existe um Céu, arriscaria não ser um dos escolhidos? “Não” é a resposta
para essas duas perguntas, e o fato de que, na prática, nenhum cristão
faz o que deveria fazer, segundo sua própria religião, para se livrar
desse castigo ou para ganhar esse prêmio só prova que nem eles mesmos
creem nessa farsa. O livre-arbítrio é só mais um argumento imbecil usado para sustentar a ilusão de que vivem num universo em que Deus existe.
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