A palavra Deus, para mim, é nada mais que a expressão e produto da fraqueza humana; a Bíblia, uma coleção de lendas honradas, mas ainda assim primitivas, que são bastante infantis.

— Albert Einstein

segunda-feira, 20 de junho de 2011

TRANSCENDÊNCIA

Diálogos de Waldemar Falcão, Marcelo Gleiser e Frei Betto em "Conversa sobre a fé e a ciência” (Ed. Agir) – Trechos das pgs. 86 a 90. Os comentários ao final são meus.
Waldemar Falcão – Isso é um ponto que acho muito interessante, que para mim de certa forma aproxima a ciência e a religião [1]: é porque as duas buscam uma compreensão do mundo que vai além daquilo que podemos captar através dos nossos cinco sentidos habituais. O que acontece é que principalmente o budismo, no caso, tenta sempre ir além daquilo que conseguimos perceber através dos cinco sentidos habituais, e de uma certa maneira acho que é o que a ciência tenta compreender: o invisível. A física quântica, principalmente, está toda mergulhada nessa parte, no mundo subatômico.
Marcelo Gleiser – O ponto então talvez seja a busca pela transcendência.
WF – Acho essa palavra perfeita nesse contexto!
MG – Que é uma coisa que tanto a religião quanto a ciência procuram. No caso, Betto, você falou da paixão que vem de fora, mas que também está dentro de você [2]. E quando se acredita num Criador que é onipotente e onipresente, para penetrar na Sua mente, você tem de transcender sua dimensão humana. Isso pode ser tanto por meio da fé, ou até mesmo da ciência, se o cientista acredita nessa metáfora que quanto mais a gente entende o mundo, mas a gente entende a mente de Deus. Hoje em dia isso costuma ser metáfora, mas na época de Galileu e de Newton era isso mesmo [3]: o mundo era uma obra do Arquiteto Divino, e, portanto, quanto mais se conhecesse deste mundo pela ciência, mais se conhecia, de fato, a mente de Deus. O [Stephen] Hawking continua usando essa metáfora: quanto mais a gente entender da teoria unificada, que visa unificar todas as forças da natureza numa só, mais a gente entende a mente de Deus. No fundo, ambas, a fé e a ciência, estão servindo como uma veículo de transcendência da condição humana, de ir além, de explorar uma dimensão desconhecida; e você, Betto, falou uma coisa interessante: que a ciência é o reino da dúvida, se alimenta da dúvida para buscar a verdade. Acho que é fundamental saber que não existem verdades acabadas, finais. O processo de busca é o processo de transcendência.
Frei Betto – Justamente, e o maior de todos os erros é a religião abafar a espiritualidade. Esse é o maior de todos os erros [4].
MG – É um paradoxo.
WF – É um paradoxo, mas fato incontestável.
FB – É como você ter um carro maravilhoso na garagem, mas que não anda. Todo mundo aprecia e...
MG – Isso é importantíssimo para mim, porque vejo como um problema sério da religião, não só no ritual católico e no cristão, mas em geral; talvez não nos evangélicos, mas também na maioria das vertentes dos ritos judaicos existe essa questão da passividade, quer dizer, você repete todas aquelas rezas, mas não tem...
WF – Aquele arrebatamento.
MG – Em contrapartida, você vai a um candomblé ou àquelas igrejas negras dos Estados Unidos, em que todo mundo canta, dança e grita... Essa coisa da entrega da atividade, da busca, não só receber e repetir, deve ser importante, concorda [5]?
se nós, africanos, tivéssemos evangelizado a Europa, a essa hora todos vocês estariam de tanga, dançando e cantando em volta do altar
FB – Tudo é a questão do poder. Em 1971, houve uma reunião de bispos de vários continentes em Roma, e um bispo africano convidou os bispos e cardeais para, à noite – naquela época não havia vídeo –, ver um documentário sobre a liturgia na diocese dele. No filme em cores aparecia um tronco de árvore com o vinho e hóstia, uns negros dançando e batucando, e as negras com os seios à mostra, de tanga, todas pintadas, dançando. Um cardeal se levantou: “Isso é um absurdo, é uma infâmia, é uma blasfêmia, não é a liturgia da Igreja!”. Aí o bispo africano parou o filme, acendeu a luz e disse: “Pode não ser da liturgia de Roma, mas da Igreja é, porque se nós, africanos, tivéssemos evangelizado a Europa, a essa hora todos vocês estariam de tanga, dançando e cantando em volta do altar” [6]. Isso comprova a dificuldade que as religiões têm de se inculturar. WF – De serem permeáveis a outras culturas.
FB – Como soube fazer isso muito bem o apóstolo Paulo, que disse “fui grego com os gregos e judeu com os judeus”. Há uma briga explícita na Carta aos Gálatas, uma das 13 cartas contidas no Novo Testamento e que são consideradas sagradas pela Igreja Cristã, que Paulo escreveu, nas quais critica duramente Pedro. E Pedro era o papa! Pedro achava que para ser cristão o pagão deveria, primeiro, passar pelos ritos judaicos: circuncisão, observação dos ritos de pureza, etc. Paulo chega a dizer que Pedro é um homem de duas caras. Não conhecemos a resposta de Pedro, mas sabemos que Paulo viveu um momento da Igreja em que, pelo amor à Igreja, se podiam expressar críticas até ao papa, não tinha essa coisa de “amém” para toda forma de autoridade, achando que a autoridade é portadora da verdade. Muitas vezes ela falseia a verdade [7]. Mas quero voltar ao tema: a ciência pode, na minha opinião, viver sem a religião. Diria mais: eu me sentiria, como cristão, como religioso, muito incomodado com uma ciência confessionalizada, como me sinto incomodado como esse esforço de querer provar, pela linha da unificação, que lá na ponta do Big Bang está Deus e... eu brincava com isso... acho que escrevi isso na Obra do Artista [8], não me lembro, mas mencionava os quarks, que nunca foram quebrados. Então são sempre três, não é isso?
MG – Na verdade, são seis quarks. Mas prótons e nêutrons são feitos de três.
FB – Ao quebrá-los, o que se encontra? Encontra-se, do outro lado, o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Considero isso uma grande bobagem. Um Deus que precisa ser explicado pela ciência, acabou [9].
[...] MG – Acho essa uma ótima posição. Pelo lado da ciência também é uma grande bobagem querer explicar Deus [10].
***
[1] Estavam falando sobre a suposição radical, e errônea, de que a religião seria o reino do dogma e da certeza absoluta; e a ciência, o reino da dúvida. Chegaram à conclusão de que o questionamento era um fator positivo, e de que a dúvida permeava tanto a ciência quanto a religião.
[2] Referência à experiência religiosa relatada por Frei Betto.
[3] Sempre acho uma grande ironia e ignorância quando afirmam que “toda religião é veneno”, pois que esses que o afirmam quase sempre são “devotos” da ciência (materialista). Soubessem eles um pouco da história da ciência, saberiam que foi graças à inspiração religiosa que muitos grandes cientistas realizaram grandes descobertas e feitos.
[4] Reparem que Frei Betto acaba de concordar com Gleiser no sentido de não aceitarmos a existência de verdades finais, acabadas, absolutas – ou, pelo menos, de não aceitarmos que já chegamos a sua compreensão completa. Todos aqueles que seguem manuais de verdades absolutas talvez ficassem atônitos ao saber que grandes religiosos e eclesiásticos, católicos como Frei Betto ou Pe. Fábio de Melo, antes consideram manuais de dúvidas divinas do que de verdades absolutas – embora todos os conheçam pelo mesmo nome. Onde há dúvida, há busca pela transcendência.
Dentro de seu agnosticismo, Gleiser me parece um ser profundamente religioso
[5] Dentro de seu agnosticismo, Gleiser me parece um ser profundamente religioso, no sentido essencial da religiosidade, que é exatamente essa busca pela transcendência, pela religação a mente de um Criador ou, talvez fosse melhor dizer no seu caso, aos mistérios ocultos do Cosmos. Em suma, ele me lembra muito o Carl Sagan quanto se mete a falar sobre religião e espiritualidade (estou fazendo aqui um grande elogio, é claro). [6] A liturgia do filme do bispo africano não era assim tão diferente da utilizada pelo Batista para seus rituais de batismo e devoção. Me lembro da cena em que Jesus o encontra, no filme “A última tentação de cristo” –acredito que tenha sido bem fiel a realidade de época. Ironias, ironias...
[7] Vejam bem: quem diz isso é um frade!
[8] “A obra do Artista – uma visão holística do Universo” (Ed. Ática), lançado em 1995.
[9] Acredito que Frei Betto tenha se confundido um pouco no que quis dizer, é claro que sempre será uma grande besteira tentar explicar ou definir Deus por meio de teorias científicas – A trindade não é formada por quarks, o Big Bang não necessariamente é um “espirro divino”, nem a física quântica parece poder explicar diretamente uma série de questões espiritualistas... Entretanto, a ciência é o conhecimento da realidade detectável e das leis naturais; enquanto que a religião é um movimento íntimo, uma certa vontade incomensurável que nos impele a refletir, a pensar, e a tentar desvendar os mistérios do Cosmos. Nesse contexto, uma não excluí a outra, e ambas estarão sempre sondando a “mente de Deus”: seja no sentido, seja no mecanismo, pois Deus é tudo que há, e algo a mais.
[10] Embora Gleiser seja um cientista agnóstico, Frei Betto um cristão socialista, e Waldemar Falcão um músico espiritualista, a conversa deles engrena em diversos momentos, o que faz desse livro um achado. De fato, já conhecia Gleiser (de “A dança do universo”, “Criação imperfeita”, dentre outros) e os dois livros anteriores de Falcão, excelentes (“Encontros com médiuns notáveis” e “O Deus de cada um”), mas me surpreendi com a coerência do próprio Frei Betto, apesar de nem sempre concordar com o que ele diz.
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Crédito da foto: Bruno Veiga/Divulgação (Frei Betto e Marcelo Gleiser).

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