A palavra Deus, para mim, é nada mais que a expressão e produto da fraqueza humana; a Bíblia, uma coleção de lendas honradas, mas ainda assim primitivas, que são bastante infantis.

— Albert Einstein

domingo, 27 de novembro de 2011

Jornalistas x Ciência: A arte de desinformar

O Brasil tem um problema sério com seu jornalismo. Eles deveriam ser um veículo de informação, mas agem no sentido inverso. Quando o STF derrubou a obrigatoriedade do diploma de jornalista, muitos chiaram. Não sei porque. Por que precisamos de jornalistas? Para darem uma informação, uma notícia? Qualquer um pode fazer isso. Um belo exemplo do “qualquer um pode fazer isso” é a costumeira publicação de besteiras que as revistas Veja e Isto É proporcionam. É lamentável que tais veículos tidos como “de informação” consigam transmitir, não só pouco conhecimento, como divulgar bobagens e incorreções, como foi o caso onde a Isto É divulgou um avanço da ciência onde pesquisadores “criaram” uma proteína humana em uma simulação das condições climáticas de Titã, a maior dos satélites naturais de Saturno. Peguem refrigerante e pipoca, pois vamos mostrar um verdadeiro festival de idiotices.
Tudo começa com uma manchete. O que seria dos jornais sem as manchetes? Principalmente, sem os exageros inerentes? Acho que ninguém leria (se bem que a maioria só lê o título mesmo). Assim, a pseudo-reportagem da Isto É começa de modo bombástico: Os domadores de Titã. Algo que parece ter saído direto da mitologia grega, como os nomes dos corpos celestes envolvidos. Examinando a “notícia”, eu me peguei brincando de Jogo dos Vários Erros. Leiam e vamos ver quantos de vocês são capazes de encontrar.
Leram? Beleza, vamos começar:
Rex, vamos passear?
Cientistas brasileiros criam proteína humana em laboratório que simula as duras e extremas condições ambientais da maior lua de Saturno.
O subtítulo, à guisa de resumo, falam que cientistas brasileiros criaram uma proteína humana (prestem atenção a esta “humana”). Criaram? Do zero? Inventaram uma ou puseram comidinha pra filhotinha e esta cresceu? Será que o certo não seria sintetizaram? Seria. Mas a frase estranha é apenas um subtítulo. Com certeza eles explicarão melhor embaixo. E, em segundo lugar, chamam Titã de “lua”, quando o mais certo seria chamá-lo de satélite natural; se bem que para os leigos, é <b>lua</b> e acabou. Deveríamos dar um desconto nessa? Vocês é que sabem.
Fúria de Titãs
Destaque para o Brasil na edição da semana passada da revista americana “New Scientist”, umas das bíblias da comunidade científica mundial: dois pesquisadores da Unicamp, capitaneando uma equipe de químicos e biólogos, concluíram com sucesso uma experiência inédita e revolucionária no campo da astronomia. Mais: por meio dela agora se impõe com dados científicos a plausibilidade da hipótese de existência de formas elementares de vida onde tal fenômeno parecia inimaginável: na lua Titã, a maior do sistema solar e que orbita o planeta Saturno – sua superfície é de aproximadamente 56.850.000 km² e se distancia da Terra em interminável 1,2 bilhão de quilômetros
Adorei o ufanismo no início da frase. BRASIL-IL-IL! Sinto como se o Galvão Bueno estivesse escrevendo isso, o que explicaria muitas coisas. Em seguida, chamam a New Scientist de “bíblia da comunidade científica”. Sei lá, mas isso não soa correto. A New Scientist – como a Nature e a Science – não é uma “bíblia” ou verdade absoluta. É uma publicação científicaque, apesar de não possuir revisão por pares, é respeitada. Revisão por pares é o tipo de revisão que acontece quando você encaminha um artigo a uma determinada publicação. Outros cientistas examinarão seu texto, verão seus métodos de pesquisa (devidamente descritos tim-tim por tim-tim), e analisaram os resultados tentando encontrar alguma brecha. Se houver, eles devolvem e pedem para esclarecer ou mesmo reescrever certas partes. Eu nunca vi uma publicação que não tenha sido rejeitada de início, com solicitação para exame e clarificação de determinados trechos. Mas jornalistas não sabem isso.
A seguir, o jornalista diz que químicos e biólogos “concluíram com sucesso uma experiência inédita e revolucionária no campo da astronomia”. Isso teria a ver com órbitas planetárias? Sim, porque astronomia cuida somente disso: dos corpos celestes. Não confundir com astrobiologia ou astroquímica; mas vamos considerar que tudo isso esteja no cerne da Astronomia, como um todo (serei bonzinho dessa vez). A propósito, não vou nem mencionar a falta de concordância da palavra “interminável” (que por sinal tem fim em 1,2 bilhão de quilômetros).
Respondem pelo experimento os pesquisadores Sérgio Pilling e Diana Andrade, que lograram reproduzir em laboratório o inóspito ambiente de Titã e, a partir daí, nele obter uma das principais proteínas imprescindíveis à vida, a adenina – ela mesma, a letra A das bases que compõem o DNA humano e que dá “leitura” genética somente quando se combina com a proteína timina.
Do jeito que o texto é colocado, parece que reproduziram todo o ecossistema de Titã, o que não foi o caso. O que a equipe de pesquisadores fez foi desenvolver o experimento de Stanley Miller e Harold Urey, que, na década de 1950, desenvolveram o experimento que é considerado um marco histórico nas pesquisas a respeito da origem da vida, a Sopa Orgânica. Ao disparar descargas elétricas sobre uma mistura de hidrogênio, água, amônia e metano, com que procuravam simular condições semelhantes à atmosfera primitiva da Terra, Milley e Urey conseguiram fazer surgir espontaneamente dois aminoácidos indispensáveis à vida: a glicina e a alanina.
Na referida experiência, a equipe usou o Laboratório Nacional de Luz Síncroton, em Campinas, para simular o efeito da radiação solar na faixa dos raios X na atmosfera de Titã. “Durante três dias, bombardeamos uma mistura de nitrogênio, metano (cerca de 5%) e um pouco de água com raios X e ultravioleta, que são radiações eletromagnéticas que estão em toda a parte nos céus. Assim, o que temos é um exemplo da atmosfera de Titã, junto com interações de emissões eletromagnéticas na faixa do ultravioleta e dos raios-X. Isso é muito pouco para chamar de “condições climáticas”.
Agora vem o verdadeiro genocídio científico, começando por chamar a adenina de proteína. Proteínas são macromoléculas, ou seja, polímeros. Polímeros são moléculas de grande massa molecular, estabelecendo ligações com diversas unidades iguais (monômeros), de modo quase infinito. Proteínas são formadas por aminoácidos, através de ligações peptídicas. Para saber mais sobre proteínas, acesse AQUI. A adenina é uma base nitrogenada da classe das purinas. Na imagem ao lado, podemos ver uma representação da sua fórmula estrutural em duas dimensões, onde notamos que é tão somente um composto heterocíclico nitrogenado, e não um polímero. O pior é que dizem que a adenina é uma proteína HUMANA! Pelas calcinhas de Hera, quer dizer que somente existe adenina nos seres humanos? Provável, porque os irresponsáveis que escreveram isso ainda continuaram no estupro científico alegando que a adenina é a letra A do DNA. Argh! Isso fará o leigo perguntar: “O que são as letras D e N?”. Quando falam isso parece que só seres humanos possuem DNA.
Resumidamente (e MUITO resumidamente), o DNA é um encadeamento de diversos nucleotídeos. Cada nucleotídeo é formado por diversas bases nitrogenadas (leia mais AQUI). Essas bases nitrogenadas são: Adenina, Guanina, Citosina e Timina (ou A, G, C e T). A Adenina e a Guanina são purinas, enquanto que a Citosina e a Timina são pirimidinas. Quando se dá a hélice dupla, os compostos de uma das “fitas”, que seriam a sequência de bases, estabelecem ligações de hidrogênio, que errôneamente chamam de Ponte de Hidrogênio. As ligações de hidrogênio são interações fracas, o que explica a sua grande importância em sistemas bioquímicos e mesmo na química. Elas são extremamente importantes por serem responsáveis pela ligação de cadeias peptídicas em proteínas e por ligarem pares de bases nas gigantescas moléculas contendo ácidos nucléicos, que é o que estamos discutindo aqui.
Purinas estabelecem pontes de hidrogênio com timinas, mas não com outras purinas; no caso da adenina, ela somente estabelecerá este tipo de ligação com a timina, enquanto que a guanina estabelecerá ligações de hidrogênio com a citosina. Dizer que a adenina se “combina” com a timina é uma ATROCIDADE, algo que faz um químico colocar as mãos entre as pernas e dizer “UUUUUUUFFFFFFFFFF”. Combinação infere em uma reação química. Se existe reação química (ou, como alguns idiotas nos colégios estão chamando: transformação química), então haverá a produção de novos componentes. Não há. Adenina continuará sendo adenina, timina continuará sendo timina e jornalista da Isto É continuará sendo imbecil.
O jornalismo científico brasileiro é um lixo! Publica-se qualquer besteira sem o menor critério, sem a menor responsabilidade. Um outro exemplo que ilustra isso foi postado pelo Carlos Hotta do Brontossauros no meu Jardim, onde ele mostra a indignação que todos nós, cientistas e amantes do conhecimento, temos quando vemos estas arbitrariedades. Em sua postagem Revista Veja #FAIL ao quadrado!, ele mostra a irresponsabilidade da Veja (curiosamente, da mesma editora que publica a Isto É) ao não ficar só informando errado, mas se sentindo no arrogante direito a não informar direito, soltando a seguinte pérola:
(…) Por não ser uma revista científica, VEJA pode sim representar os genes como bolinhas. Cometeríamos erro se tivéssemos trocado os genes pelo DNA ou coisas do gênero. As imagens publicadas foram obtidas em bancos de imagens e estão identificadas da mesma forma como aparecem em VEJA.
Aqui vemos o total compromisso da Veja Multiuso (extensivo à Isto É) em apenas o lucro, e não informar. Não se sentem na obrigação de informar direito, então qual obrigação os prende em publicar outras notícias com acurácia e seriedade? É uma vergonha que isso exista nesse país, pois, ao meu ver, deveriam responder processo por alienação cultural. Realmente, são revistas independentes. Elas não dependem de veracidade em suas redações para fazer sucesso. Dependem de uma população de pseudoleitores.
Para você, que quer saber exatamente o que a New Scientist trouxe, e que os vendedores de jornal ignoraram, o link é ESTE, e quando alguém o olhar com superioridade, citando a Veja ou Isto É, como fonte de informação, pode rir à vontade que eu deixo.

Andre:ceticismo.net

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