Ardi viveu na Etiópia. Tinha 1,20 metro e 50 quilos. Era bípede, e talvez pegasse objetos com as mãos similares às nossas
Um milhão de anos antes de Lucy, Ardi já caminhava sobre as duas pernas – mas também pulava de galho em galho. E era grande. Com 1,20 metro de altura e pesando 50 quilos, Ardi tinha o tamanho de um chimpanzé adulto, nosso mais próximo parente vivo. Seu cérebro também tinha volume semelhante ao de um chimpanzé. Mas as semelhanças param por aí. O traço mais impressionante de Ardi são suas mãos. Não são as mãos de um macaco. Elas são assustadoramente humanas. As mãos são a melhor ferramenta do Homo sapiens. Graças à versatilidade delas (com seu polegar opositor) aprendemos a lascar pedras e fazer fogo. Foi com elas que Shakespeare escreveu Hamlete Michelangelo pintou a Capela Sistina. Daí a surpresa dos especialistas ao perceber que nossas mãos não são exclusividade humana – nem modernas. Elas são muito antigas.
Ardi é um enigma. Até sua descoberta, acreditava-se que o ancestral comum entre homens e chimpanzés fosse um chimpanzé mais inteligente. O simples fato de Ardi ter existido descarta essa hipótese. Agora, dizem seus descobridores, sabemos que o elo perdido era muito mais humano. O Homo sapiens é o elo mais recente – e nada revolucionário – de uma linhagem muito longa. Quem mudou, quem evoluiu rapidamente e se diferenciou foram os chimpanzés e os gorilas. Ninguém sabe ainda por quê. “Ardi é a coisa mais próxima que se conhece do ancestral comum. Ela tem traços que ninguém viu antes”, disse o antropólogo americano Tim White, da Universidade da Califórnia em Berkeley, na apresentação do novo fóssil, no dia 1o de outubro, na sede da Associação Americana para o Progresso da Ciência, em Washington.
Em 1871, Charles Darwin escandalizou o mundo ao afirmar, em A descendência do homem, que o ser humano e o chimpanzé descendiam de um ancestral comum, “o elo perdido”. Pai da teoria da evolução, Darwin disse que seria impossível arriscar quais eram as características daquele ancestral, o que só poderia ser feito ao encontrar seu fóssil. Na falta dele, a alternativa seria olhar os gorilas e chimpanzés. Ao estudar suas semelhanças e diferenças com o homem, previu Darwin, poderíamos imaginar como teria sido o elo perdido.
"É provável que a mão humana seja mais primitiva que a dos chimpanzés" C. OWEN LOVEJOY, antropólogo da Universidade Estadual Kent |
A história evolutiva da humanidade remete ao mito do herói. Nesse caso, nosso herói era um macaco indefeso. Ele não era dotado da força nem das presas e garras das feras selvagens. Sua única faculdade era a inteligência. Fazendo uso de seu dom, ele enfrentou os caprichos da natureza e lutou pela sobrevivência para, finalmente, tornar-se humano. Quanto aos chimpanzés, teriam permanecido nas florestas da África, vivendo num estado de inocência primitiva, como sempre o fizeram, catando e comendo piolhos uns dos outros.
Trata-se de uma visão bela e romântica. Graças a Ardi, agora sabemos que não condiz com a realidade. “Lucy era um ícone entre os fósseis. Desde sua descoberta, sempre que imaginávamos como seriam nossos ancestrais, Lucy vinha à mente – ou um chimpanzé”, diz o antropólogo C. Owen Lovejoy, da Universidade Estadual Kent, de Ohio. “Essas suposições estavam erradas. Ardi é nossa grande irmã mais velha.”
Por que não publicar as inúmeras descobertas aos poucos, em vez de esperar 15 anos até ter o estudo completo?, perguntei a Tim White, o líder da pesquisa. “Quinze anos versus 4,4 milhões de anos. Não vejo problema. Essa descoberta foi como achar uma cápsula do tempo de um período e um lugar do qual nada sabíamos”, diz White. “Além do esqueleto de Ardi na capa da Science, coletamos 150 mil amostras de animais, madeira e do solo. Há roedores, há morcegos, são dezenas de espécies antes desconhecidas. Para estudar essa avalanche de dados, reunimos os melhores especialistas do mundo para dissecar essas relíquias únicas e apresentar os resultados da forma mais ampla possível. Sim, levou 15 anos. Mas valeu a pena.”
Há 4,4 milhões de anos, a região de Awash era muito diferente da paisagem inóspita atual. Havia rios, lagos e bosques, que abrigavam uma fauna muito variada, com diversas espécies de cervos, elefantes, peixes, porcos-espinhos e macacos. Os dentes de Ardi mostram que, como nós, ela comia de tudo: frutas, raízes e carne.
“Ardi era muito primitiva. Os humanos retiveram alguns daqueles traços primevos”, diz Lovejoy. O melhor exemplo são nossas mãos. “É provável que a mão humana seja mais primitiva que a dos chimpanzés.” Olhe sua mão e entenda. Estique os dedos. Todos se projetam para a frente, apesar de o polegar poder se mover para o lado. Agora, coloque a palma da mão sobre uma superfície lisa. Você pode apoiar o peso do braço nela. Ardi fazia o mesmo. Suas mãos eram parecidas com as nossas, embora seu polegar fosse mais curto e os outros dedos mais longos. Desde Ardi, essa anatomia flexível está presente em todos os hominídeos. Mas não nos chimpanzés. Eles são incapazes de esticar a palma da mão, pois seu polegar é virado para o lado. Essa característica permite aos chimpanzés segurar melhor nos galhos das árvores, garantindo-lhes uma destreza arbórea que nos escapa. Há 4,4 milhões de anos, Ardi devia trepar em árvores de forma lenta e cuidadosa. Não tinha a mesma agilidade dos chimpanzés. Um milhão de anos depois, a tribo de Lucy perdeu essa habilidade. Sua espécie, a afarensis, era tão desajeitada em árvores como a nossa.
Se as mãos humanas são uma herança que Ardi nos legou, o mesmo não se pode dizer dos pés. Apesar de Ardi ser bípede, os dedões dos pés eram virados para o lado, como nos chimpanzés. Isso significa que Ardi não podia caminhar por longas distâncias, muito menos correr. Essa habilidade evoluiu com Lucy. Já os chimpanzés e gorilas ficam em pé eventualmente, mas não caminham. Para se locomover, eles fecham as patas dianteiras e se apoiam sobre os nódulos do dedos, coisa que Ardi nunca fez. Para os cientistas, andar apoiando-se nos dedos das mãos é uma adaptação recente dos chimpanzés, cuja anatomia evoluiu rápido nos últimos milhões de anos.
Já a mão humana é o fac-símile de um modelo anterior, que se encontra praticamente estagnado desde os tempos de Ardi. O mesmo argumento vale para o fato de sermos bípedes. Daí os cientistas inferirem que ambos os atributos são muito antigos. Eles datam do elo perdido. “O estudo de Ardi nos fez concluir que o último ancestral comum é bem mais velho que os estudos de DNA indicam”, diz White. “O ancestral viveu de 6 milhões a 9 milhões de anos atrás e tinha mãos como as nossas.”
Não havia grande diferença de tamanho entre os machos e fêmeas dos ramidus – um traço marcante nos gorilas machos, muito maiores que as fêmeas. Ardi dividia seu tempo entre as árvores e o solo, quando andava ereta. Ao fazê-lo, liberava as mãos para fazer o que quisesse. Se suas mãos eram parecidas com as nossas, será que conseguia manusear objetos, como galhos ou instrumentos de pedra?, perguntei a White. “A possibilidade existe. Mas vasculhamos cada centímetro quadrado de terreno e não achamos nenhuma pedra ou instrumento lascado.”
A descoberta de Ardi embaralha as peças do tabuleiro científico. Em vez de consolidar um pensamento antropológico cristalizado por décadas, Ardi veio tirar o pó dos armários mofados da academia. Sua existência questiona todas as nossas certezas com relação à origem do homem. E isso é ótimo! Agora, uma nova geração de cientistas terá a oportunidade de reunir os cacos das velhas teorias para estabelecer uma nova. Ela deve explicar por que a linhagem humana é tão antiga e por que os chimpanzés e gorilas se diferenciaram. Como profetizou Darwin há 140 anos, enquanto não se achar o elo perdido, o máximo que os cientistas podem fazer é usar a imaginação e dar palpites – sempre correndo o risco de estar redondamente enganados. " (Época, 5 de outubro de 2009, págs. 112-115).
As imagens abaixo mostram algumas formas por que passou a evolução humana ao longo de sete milhões de anos. |
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