- Creem em Deus ou num espírito universal: 92%
- Acreditam no paraíso celeste: 74%
- Acreditam no inferno: 59%
- Creem que a Bíblia é a palavra de Deus: 63%
- Rezam ao menos uma vez por dia: 58%
- Acreditam em milagres: 79%
domingo, 20 de março de 2011
Por que temos cérebros instalados para favorecer a crença em Deus
Autor: Michael Shermer
Preâmbulo e tradução: Camilo Gomes Jr.
Fonte: Skepticblog
PREÂMBULO
Quem já passou pela experiência da “desconversão” e conhece outros que também passaram, alguns que nem sequer se converteram algum dia e também aqueles que nunca abandonam suas crenças religiosas, não importa que argumentos se lhes apresentem, está bem ciente de uma coisa: sendo membros de uma mesma espécie, nós, humanos, somos todos iguais; porém, em certos detalhes, alguns são muito mais iguais que outros. Há pessoas para as quais se libertar de uma crença religiosa, de uma crendice supersticiosa ou de qualquer outro tipo de ideia sobrenaturalista revela-se uma experiência difícil, não raro dolorosa, mas que acaba se impondo pela força da própria razão. Para um outro pequeno grupo em que se incutiram tais crenças, por sua vez, livrar-se delas por força da razão é curiosamente simples e indolor. Ao passo que, enfim, existem também pessoas, não raro inteligentes e sensatas, que conseguem acompanhar sem dificuldade qualquer argumento contra suas crenças, mas recusam-se a aceitar as conclusões que as refutem, enxergando um e outro non sequitur onde estes não se encontram — neste último grupo, estão aqueles enigmáticos cristãos que guardam uma visão materialístico-naturalista da origem do universo e da evolução da vida, por exemplo.
Pois bem! Relendo recentemente alguns antigos ensaios de Michael Shermer, deparei-me com este, em que, numa linguagem bem simples, ele procura discorrer sobre esse tipo particular de crenças, que os humanos de todas as culturas do planeta acabaram desenvolvendo. Por que somos tão propensos a acreditar no sobrenatural? Por que algumas pessoas tendem mais facilmente ao ceticismo do que outras? Por que alguns, por outro lado, são mais suscetíveis ao fanatismo religioso? Como pode haver mesmo biólogos evolucionistas, dedicados a refutar os disparates criacionistas, críticos das religiões e de suas escrituras sagradas, que, todavia, são espíritas, convictos de que almas imortais não apenas existem, como reencarnam sucessivas vezes em corpos distintos, que nascem, crescem e morrem, ao longo dos pequenos trechos da linha temporal que compreenderiam apenas seu tempo de vida terrena? (Eu mesmo conheço uma pessoa que se encaixa perfeitamente nessa descrição.)
Enfim, por que é que, ao que tudo indica, sempre haverá pessoas dispostas a acreditar no sobrenatural, seja em que forma for? É dessa questão que se trata o presente ensaio. E como é um ponto pertinente e curioso, resolvi traduzir o texto e publicá-lo aqui, no Bule Voador, para que possamos discutir as implicações de seus argumentos. Isto posto, passemos a palavra ao Sr. Shermer.
Camilo Gomes Jr.
***
DE ACORDO COM a World Christian Encyclopedia [Enciclopédia Cristã Mundial], da Oxford University Press, 84% da população do planeta pertence a alguma forma de religião organizada, o que, no final de 2009, equivalia a 5,7 bilhões de pessoas pertencentes a cerca de 10 mil religiões distintas, cada uma das quais podendo ser ainda dividida e classificada em novos subgrupos. Os cristãos, por exemplo, podem ser distribuídos entre 33.820 denominações diferentes.[1] Dentre as muitas designações binominais conferidas à nossa espécie (Homo sapiens, Homo ludens, Homo economicus), poderia haver uma boa justificativa para o Homo religiosus. E os americanos estão entre os membros mais religiosos de nossa espécie. Num estudo do Pew Forum, de 2007, realizado com mais de 35 mil cidadãos estadunidenses, os seguintes percentuais de crença foram encontrados:
Tão poderosa é a crença de que deve haver alguma coisa “lá fora” que até mesmo 21% dos que se identificaram como ateus e 55% dos que se identificaram como agnósticos manifestaram algum tipo de crença em Deus ou num espírito universal.
Por que tantas pessoas acreditam em Deus? Embora haja muita variação cultural dentre diferentes credos religiosos, todos têm em comum a crença em agentes sobrenaturais na forma de Deus, deuses ou espíritos que têm intenção e interagem conosco no mundo. Existem quatro linhas evidenciais que apontam para a conclusão de que esse tipo de crença está instalada em nossos cérebros.
A TEORIA DA EVOLUÇÃO E DEUS
Em seu livro de 1871, A origem do homem, Charles Darwin observou que os antropólogos concluem que “uma crença em agências espirituais que permeiam tudo parece ser universal, e, ao que tudo indica, resulta de um avanço considerável nos poderes de racionalização do homem, bem como de um avanço ainda maior em suas faculdades de imaginação, curiosidade e encantamento.” Mas por que a religião e a crença em Deus evoluiriam? Darwin sugeriu que isso poderia acentuar a coesão grupal em competição contra outros grupos: “Não resta dúvida de que uma tribo que incluísse muitos membros que, em virtude de possuírem num elevado grau o espírito de patriotismo, fidelidade, obediência, coragem e empatia, estivessem sempre prontos para ajudarem-se uns aos outros e para sacrificarem-se pelo bem-comum, sairia vitoriosa sobre a maioria das demais tribos, e isso seria seleção natural (do grupo).”
Pegando de onde Darwin parou, em meu livro How we believe [Como nós acreditamos], eu desenvolvi um modelo evolutivo da crença em Deus como parte de um conjunto de mecanismos usados pela religião, a qual defino como uma instituição social voltada a criar e promover mitos, a encorajar o conformismo e o altruísmo, e a sinalizar o nível de compromisso com a cooperação e a retribuição entre os membros de uma comunidade. Cerca de 5 a 7 mil anos atrás, quando bandos e tribos começaram a coalescer, formando reinos supremos e estados, mesmo antes da invenção de uma estrutura de governo, as religiões foram as primeiras instituições sociais a codificar comportamentos morais, tornando-os em princípios éticos, e Deus evoluiu como o reforçador máximo dessas regras.
Os universais humanos são traços partilhados por todas as pessoas, tais como o uso de ferramentas, os mitos, os papéis sexuais, os grupos sociais, a violência, a linguagem gestual, a gramática, os fonemas e muitos outros relacionados à religião e à crença em Deus, incluindo: a antropomorfização de animais e objetos, a crença no sobrenatural, crenças e rituais a respeito da morte, crenças sobre sorte e azar, adivinhação, folclore, magia, e mitos e rituais religiosos. Embora tais universais não sejam totalmente controlados apenas pelos genes (quase nada disso o é), há boas razões para se acreditar que há uma forte predisposição genética para que esses traços sejam expressos dentro de suas respectivas culturas. Ou seja, nossa cultura pode até ditar o Deus em que acreditar, mas a crença num agente sobrenatural que opera no mundo é universal, presente em todas as culturas, porque está instalada em nossos cérebros, uma conclusão reforçada por estudos com gêmeos idênticos separados ao nascer e criados em ambientes distintos.
A GENÉTICA COMPORTAMENTAL E DEUS
Num estudo de 53 pares de gêmeos idênticos e 31 pares de gêmeos fraternos, todos criados separadamente, Niels Waller, Thomas Bouchard e seus colegas do projeto, realizado no estado do Minnesota, verificaram cinco medidas distintas de religiosidade e descobriram que as correlações entre gêmeos idênticos eram tipicamente o dobro da encontrada entre gêmeos fraternos, um achado que sugere que fatores genéticos respondem por cerca de metade da variação em suas medidas de crença religiosa.
Esta descoberta foi corroborada por dois estudos bem mais abrangentes oriundos da Austrália (com 3.810 pares de gêmeos) e da Inglaterra (com 825 pares de gêmeos), os quais compararam gêmeos idênticos e fraternos quanto a numerosas medidas de crenças e comportamentos sociais, chegando à conclusão de que cerca de 55% da variação em atitudes religiosas parece ser genética. Os cientistas também concluíram que aqueles que crescem em famílias religiosas e que, mais tarde, tornam-se religiosos, eles próprios, fazem-no sobretudo porque herdaram uma disposição (de um de seus genitores ou de ambos) para expressarem positivamente sentimentos religiosos. Sem essa disposição genética, a doutrinação religiosa dos pais parece ter poucos efeitos duradores.
Obviamente, os genes não determinam se alguém vai escolher o judaísmo, o catolicismo, o Islã, ou qualquer outra religião. Em vez disso, uma crença em agentes sobrenaturais (Deus, anjos e demônios) e o apego para com certas práticas religiosas (frequência à igreja, orações, rituais) parece refletir processos cognitivos geneticamente fundamentados (inferir a existência de agentes invisíveis), bem como traços de personalidade (respeito por autoridade, tradicionalismo). Mas por que herdamos esta tendência?
A PSICOLOGIA COGNITIVA E DEUS
Há muito, muito tempo, num ambiente paleolítico muito distante do mundo moderno, os humanos evoluíram para encontrar significativos padrões causais na natureza, a fim de dar sentido ao mundo, e incutir agência intencional em muitos desses padrões, alguns dos quais viraram espíritos animistas e deuses poderosos. Eu chamo esses dois processos de “patternicity” [padronicidade] (a tendência de encontrar padrões significativos tanto em dados expressivos quanto em dados sem sentido) and “agenticity” [agenticidade] (a tendência de incutir em padrões significado, intenção e agência).
Imagine que você seja um hominídeo nas planícies da África e que escuta uns ruídos na grama. Seria um predador ou apenas o vento? Se você aceita que o barulho na grama é um perigoso predador, mas é apenas o vento, cometeu um Erro de Tipo I (um falso positivo), sem qualquer prejuízo, no entanto. Mas se você acredita que o barulho na grama é só o vento, quando, de fato, trata-se de um perigoso predador, cometeu um Erro de Tipo II (um falso negativo), e há uma boa chance de que será almoçado, acabando, portanto, removido do pool genético da espécie. Por sermos ineficientes em discriminar entre falsos positivos e falsos negativos, e devido ao fato de que o custo de cometer um Erro de Tipo I é bem menor do que o de cometer um Erro de Tipo II, a seleção natural favoreceu esses hominídeos que tendiam a acreditar que todos os padrões são reais e potencialmente perigosos. Eis a base não apenas para a crença em Deus, mas também em almas, espíritos, fantasmas, demônios, anjos, alienígenas, designers inteligentes, e todos os tipos de agentes invisíveis com intenção de nos prejudicar ou ajudar.
Deuses são agentes, e agentes são essências, e a agenticidade está em todo lugar. Sujeitos que assistem a pontos refletivos em movimento numa sala escura (sobretudo se os pontos assumem a forma de duas pernas e dois braços) inferem que eles representam uma pessoa ou um agente intencional. Crianças acreditam que o sol é capaz de pensar e que ele as fica seguindo por toda parte, e quando se lhes pede que desenhem uma figura do sol, com frequência lhe acrescentam uma face sorridente, a fim de lhe concederem agência. Normalmente, acredita-se que alimentos em forma de genitais, tais como bananas ou ostras, melhoram a potência sexual. Um terço dos pacientes de transplantes acredita que a personalidade ou a essência do doador é transplantada com o órgão, e estudos mostram que a maioria das pessoas diz que jamais usaria o suéter de um assassino, manifestando intensa repugnância (provavelmente uma emoção evoluída que foi selecionada para se evitar alimentos podres ou substâncias que portam doenças), mas vestiria o cardigã do apresentador de programas televisivos infanto-juvenis Mr. Rogers, acreditando que ele faria delas pessoas melhores.
A NEUROCIÊNCIA E DEUS
Por que Deus? Em minha analogia acima, observem que “vento” representa uma força inanimada, enquanto “perigoso predador” indica um agente intencional. Há uma enorme diferença entre uma força inanimada e um agente intencional. A maioria dos animais consegue fazer essa distinção no nível superficial de vida ou morte, mas nós fazemos algo que outros animais não fazem. Como hominídeos de cérebro grande dotado de um córtex desenvolvido, possuímos uma Teoria da Mente — a capacidade de estarmos cientes de estados mentais, tais como desejos e intenções, tanto em nós mesmos quanto nos outros. Nós “lemos mentes” colocando-nos no lugar de outra pessoa (como na empatia) ou imaginando que alguém está afim de nos prejudicar (como no medo).
A Teoria da Mente é parte de um dualismo mente-cérebro mais amplo, em que tendemos a pensar na mente como algo separado do cérebro. Falamos de “meu corpo” como se “meu” e “corpo” fossem distintos. Nós nos deleitamos com livros e filmes que são dualísticos, como em A metamorfose, de Kafka, em que um rapaz adormece e acorda na forma de uma barata com sua personalidade intacta dentro dela, ou em Sexta-feira muito louca, em que mãe e filha (Jamie Lee Curtis e Lindsey Lohan) trocam de corpos com suas essências preservadas. Essa crença na mente e na essência é um subproduto da incapacidade do cérebro de perceber a si mesmo. Assim, podemos nos deslocar de nosso próprio “centro” e imaginar, digamos, que estamos numa praia do Havaí, o que a maioria das pessoas costuma visualizar, olhando para si mesmas de cima para baixo, como se estivessem fora de seus corpos. Experiências Extracorporais e Experiências de Quase-Morte podem ser provocadas tanto pelo bombardeio dos lobos temporais (logo acima dos ouvidos) com campos eletromagnéticos quanto pela privação de oxigênio nos exercícios com aceleração centrífuga do treinamento para pilotos. Além disso, há o já bem conhecido “fator terceiro homem”, em que pessoas que navegavam sozinhas, alpinistas, maratonistas e exploradores das regiões árticas relatam ter sentido a presença de mais alguém na expedição.
Nós acreditamos no sobrenatural porque acreditamos no natural e não conseguimos discriminar entre uma coisa e outra. Criamos deuses porque somos sobrenaturalistas natos, movidos por nossa tendência natural de encontrar padrões significativos e conceder-lhes agência intencional. Os deuses estarão sempre conosco porque estão instalados dentro de nossos cérebros.
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REFERÊNCIAS
[1] Barrett, D. B., G. T. Kurian, T. M. Johnson (Eds.). 2001. World Christian Encyclopedia: A Comparative Survey of Churches and Religions in the Modern World. 2 Vols. Oxford: Oxford University Press.
[3] Darwin, C. 1871. The Descent of Man. London: John Murray, Vol. 2, 395.
[4] Ibid., Vol. 1, 166.
[5] Shermer, Michael. 1999. How We Believe. New York: Henry Holt/Times Books.
[6] Waller, N.G., B. Kojetin, T. Bouchard, D. Lykken, and A. Tellegen. 1990. “Genetic and environmental influences on religious attitudes and values: A study of twins reared apart and together.” Psychological Science 1(2): 138–42.
[7] Martin, N. G., L. J. Eaves, A. C. Heath, R. Jardine, L. M. Feingold, and H. J. Eysenck. 1986. Transmission of social attitudes. Proceedings of the National Academy of Science USA 83: 4364–68.
Eaves, L. J., H. J. Eysenck, and N. G. Martin. 1989. Genes, culture and personality: An empirical approach. London and San Diego: Academic Press.
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