terça-feira, 1 de maio de 2012
A intolerância religiosa, por Drauzio Varella.
O fervor religioso é uma arma assustadora, disposta a disparar contra os que pensam de modo diverso
SOU ATEU e mereço o mesmo respeito que tenho pelos religiosos.
A humanidade inteira segue uma religião ou crê em algum ser ou fenômeno
transcendental que dê sentido à existência. Os que não sentem
necessidade de teorias para explicar a que viemos e para onde iremos são
tão poucos que parecem extraterrestres.
Dono de um cérebro com capacidade de processamento de dados incomparável
na escala animal, ao que tudo indica só o homem faz conjecturas sobre o
destino depois da morte. A possibilidade de que a última batida do
coração decrete o fim do espetáculo é aterradora. Do medo e do
inconformismo gerado por ela, nasce a tendência a acreditar que somos
eternos, caso único entre os seres vivos.
Todos os povos que deixaram registros manifestaram a crença de que
sobreviveriam à decomposição de seus corpos. Para atender esse desejo, o
imaginário humano criou uma infinidade de deuses e paraísos celestiais.
Jamais faltaram, entretanto, mulheres e homens avessos a interferências
mágicas em assuntos terrenos. Perseguidos e assassinados no passado,
para eles a vida eterna não faz sentido.
Não se trata de opção ideológica: o ateu não acredita simplesmente
porque não consegue. O mesmo mecanismo intelectual que leva alguém a
crer leva outro a desacreditar.
Os religiosos que têm dificuldade para entender como alguém pode
discordar de sua cosmovisão devem pensar que eles também são ateus
quando confrontados com crenças alheias.
Que sentido tem para um protestante a reverência que o hindu faz diante
da estátua de uma vaca dourada? Ou a oração do muçulmano voltado para
Meca? Ou o espírita que afirma ser a reencarnação de Alexandre, o
Grande? Para hindus, muçulmanos e espíritas esse cristão não seria ateu?
Na realidade, a religião do próximo não passa de um amontoado de
falsidades e superstições. Não é o que pensa o evangélico na
encruzilhada quando vê as velas e o galo preto? Ou o judeu quando
encontra um católico ajoelhado aos pés da virgem imaculada que teria
dado à luz ao filho do Senhor? Ou o politeísta ao ouvir que não há
milhares, mas um único Deus?
Quantas tragédias foram desencadeadas pela intolerância dos que não
admitem princípios religiosos diferentes dos seus? Quantos acusados de
hereges ou infiéis perderam a vida?
O ateu desperta a ira dos fanáticos, porque aceitá-lo como ser pensante
obriga-os a questionar suas próprias convicções. Não é outra a razão que
os fez apropriar-se indevidamente das melhores qualidades humanas e
atribuir as demais às tentações do Diabo. Generosidade, solidariedade,
compaixão e amor ao próximo constituem reserva de mercado dos tementes a
Deus, embora em nome Dele sejam cometidas as piores atrocidades.
Os pastores milagreiros da TV que tomam dinheiro dos pobres são
tolerados porque o fazem em nome de Cristo. O menino que explode com a
bomba no supermercado desperta admiração entre seus pares porque
obedeceria aos desígnios do Profeta. Fossem ateus, seriam considerados
mensageiros de Satanás.
Ajudamos um estranho caído na rua, damos gorjetas em restaurantes aos
quais nunca voltaremos e fazemos doações para crianças desconhecidas,
não para agradar a Deus, mas porque cooperação mútua e altruísmo
recíproco fazem parte do repertório comportamental não apenas do homem,
mas de gorilas, hienas, leoas, formigas e muitos outros, como
demonstraram os etologistas.
O fervor religioso é uma arma assustadora, sempre disposta a disparar
contra os que pensam de modo diverso. Em vez de unir, ele divide a
sociedade -quando não semeia o ódio que leva às perseguições e aos
massacres.
Para o crente, os ateus são desprezíveis, desprovidos de princípios
morais, materialistas, incapazes de um gesto de compaixão, preconceito
que explica por que tantos fingem crer no que julgam absurdo.
Fui educado para respeitar as crenças de todos, por mais bizarras que a
mim pareçam. Se a religião ajuda uma pessoa a enfrentar suas
contradições existenciais, seja bem-vinda, desde que não a torne
intolerante, autoritária ou violenta.
Quanto aos religiosos, leitor, não os considero iluminados nem crédulos,
superiores ou inferiores, os anos me ensinaram a julgar os homens por
suas ações, não pelas convicções que apregoam.
(Folha de SP, 21/04/12)
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