O
Brasil tem um problema sério com seu jornalismo. Eles deveriam ser um
veículo de informação, mas agem no sentido inverso. Quando o
STF derrubou a obrigatoriedade do diploma de jornalista,
muitos chiaram. Não sei porque. Por que precisamos de jornalistas? Para
darem uma informação, uma notícia? Qualquer um pode fazer isso. Um belo
exemplo do “qualquer um pode fazer isso” é a costumeira publicação de
besteiras que as revistas
Veja e
Isto É proporcionam.
É lamentável que tais veículos tidos como “de informação” consigam
transmitir, não só pouco conhecimento, como divulgar bobagens e
incorreções, como foi o caso onde a
Isto É divulgou um
avanço da ciência onde pesquisadores “criaram” uma proteína humana em
uma simulação das condições climáticas de Titã, a maior dos satélites
naturais de Saturno. Peguem refrigerante e pipoca, pois vamos mostrar um
verdadeiro festival de idiotices.
Tudo começa com uma manchete. O que
seria dos jornais sem as manchetes? Principalmente, sem os exageros
inerentes? Acho que ninguém leria (se bem que a maioria só lê o título
mesmo). Assim, a pseudo-reportagem da
Isto É começa de modo bombástico:
Os domadores de Titã.
Algo que parece ter saído direto da mitologia grega, como os nomes dos
corpos celestes envolvidos. Examinando a “notícia”, eu me peguei
brincando de Jogo dos
Vários Erros. Leiam e vamos ver quantos de vocês são capazes de encontrar.
Leram? Beleza, vamos começar:
Rex, vamos passear?
Cientistas brasileiros criam
proteína humana em laboratório que simula as duras e extremas condições
ambientais da maior lua de Saturno.
O subtítulo, à guisa de resumo, falam que cientistas brasileiros criaram
uma proteína humana (prestem atenção a esta “humana”). Criaram? Do
zero? Inventaram uma ou puseram comidinha pra filhotinha e esta cresceu?
Será que o certo não seria sintetizaram? Seria. Mas a
frase estranha é apenas um subtítulo. Com certeza eles explicarão melhor
embaixo. E, em segundo lugar, chamam Titã de “lua”, quando o mais certo
seria chamá-lo de satélite natural; se bem que para os leigos, é
<b>lua</b> e acabou. Deveríamos dar um desconto nessa? Vocês
é que sabem.
Fúria de Titãs
Destaque para o Brasil na
edição da semana passada da revista americana “New Scientist”, umas das
bíblias da comunidade científica mundial: dois pesquisadores da Unicamp,
capitaneando uma equipe de químicos e biólogos, concluíram com sucesso
uma experiência inédita e revolucionária no campo da astronomia. Mais:
por meio dela agora se impõe com dados científicos a plausibilidade da
hipótese de existência de formas elementares de vida onde tal fenômeno
parecia inimaginável: na lua Titã, a maior do sistema solar e que orbita
o planeta Saturno – sua superfície é de aproximadamente 56.850.000 km² e
se distancia da Terra em interminável 1,2 bilhão de quilômetros
Adorei o ufanismo no início da frase. BRASIL-IL-IL! Sinto como se o Galvão Bueno estivesse escrevendo isso, o que explicaria muitas coisas. Em seguida, chamam a New Scientist de “bíblia da comunidade científica”. Sei lá, mas isso não soa correto. A New Scientist – como a Nature e a Science
– não é uma “bíblia” ou verdade absoluta. É uma publicação
científicaque, apesar de não possuir revisão por pares, é respeitada.
Revisão por pares é o tipo de revisão que acontece quando você encaminha
um artigo a uma determinada publicação. Outros cientistas examinarão
seu texto, verão seus métodos de pesquisa (devidamente descritos tim-tim
por tim-tim), e analisaram os resultados tentando encontrar alguma
brecha. Se houver, eles devolvem e pedem para esclarecer ou mesmo
reescrever certas partes. Eu nunca vi uma publicação que não tenha sido
rejeitada de início, com solicitação para exame e clarificação de
determinados trechos. Mas jornalistas não sabem isso.
A seguir, o jornalista diz que químicos e
biólogos “concluíram com sucesso uma experiência inédita e
revolucionária no campo da astronomia”. Isso teria a ver com órbitas
planetárias? Sim, porque astronomia cuida somente disso: dos corpos
celestes. Não confundir com astrobiologia ou astroquímica; mas vamos
considerar que tudo isso esteja no cerne da Astronomia, como um todo
(serei bonzinho dessa vez). A propósito, não vou nem mencionar a falta
de concordância da palavra “interminável” (que por sinal tem fim em 1,2
bilhão de quilômetros).
Respondem pelo experimento
os pesquisadores Sérgio Pilling e Diana Andrade, que lograram reproduzir
em laboratório o inóspito ambiente de Titã e, a partir daí, nele obter
uma das principais proteínas imprescindíveis à vida, a adenina – ela
mesma, a letra A das bases que compõem o DNA humano e que dá “leitura”
genética somente quando se combina com a proteína timina.
Do jeito que o texto é colocado, parece
que reproduziram todo o ecossistema de Titã, o que não foi o caso. O que
a equipe de pesquisadores fez foi desenvolver o experimento de Stanley
Miller e Harold Urey, que, na década de 1950,
desenvolveram o experimento que é considerado um marco histórico nas pesquisas a respeito da origem da vida,
a Sopa Orgânica. Ao disparar descargas elétricas sobre uma mistura de
hidrogênio, água, amônia e metano, com que procuravam simular condições
semelhantes à atmosfera primitiva da Terra, Milley e Urey conseguiram
fazer surgir espontaneamente dois aminoácidos indispensáveis à vida: a
glicina e a alanina.
Na referida experiência, a equipe usou o
Laboratório Nacional de Luz Síncroton,
em Campinas, para simular o efeito da radiação solar na faixa dos raios
X na atmosfera de Titã. “Durante três dias, bombardeamos uma mistura de
nitrogênio, metano (cerca de 5%) e um pouco de água com raios X e
ultravioleta, que são radiações eletromagnéticas que estão em toda a
parte nos céus. Assim, o que temos é um exemplo da atmosfera de Titã,
junto com interações de emissões eletromagnéticas na faixa do
ultravioleta e dos raios-X. Isso é muito pouco para chamar de “condições
climáticas”.
Agora vem o verdadeiro genocídio científico, começando por chamar a adenina de
proteína.
Proteínas são macromoléculas, ou seja, polímeros. Polímeros são
moléculas de grande massa molecular, estabelecendo ligações com diversas
unidades iguais (monômeros), de modo quase infinito. Proteínas são
formadas por aminoácidos, através de ligações peptídicas. Para saber
mais sobre proteínas, acesse
AQUI.
A adenina é uma base nitrogenada da classe das purinas. Na imagem ao
lado, podemos ver uma representação da sua fórmula estrutural em duas
dimensões, onde notamos que é tão somente um composto heterocíclico
nitrogenado, e não um polímero. O pior é que dizem que a adenina é uma
proteína
HUMANA! Pelas calcinhas de Hera, quer dizer
que somente existe adenina nos seres humanos? Provável, porque os
irresponsáveis que escreveram isso ainda continuaram no estupro
científico alegando que a adenina é a letra
A do
DNA. Argh! Isso fará o leigo perguntar: “O que são as letras
D e
N?”. Quando falam isso parece que só seres humanos possuem DNA.
Resumidamente (e MUITO resumidamente), o
DNA é um encadeamento de diversos nucleotídeos. Cada nucleotídeo é
formado por diversas bases nitrogenadas (leia mais
AQUI). Essas bases nitrogenadas são: Adenina, Guanina, Citosina e Timina (ou
A, G, C e T).
A Adenina e a Guanina são purinas, enquanto que a Citosina e a Timina
são pirimidinas. Quando se dá a hélice dupla, os compostos de uma das
“fitas”, que seriam a sequência de bases, estabelecem ligações de
hidrogênio, que errôneamente chamam de Ponte de Hidrogênio. As ligações
de hidrogênio são interações fracas, o que explica a sua grande
importância em sistemas bioquímicos e mesmo na química. Elas são
extremamente importantes por serem responsáveis pela ligação de cadeias
peptídicas em proteínas e por ligarem pares de bases nas gigantescas
moléculas contendo ácidos nucléicos, que é o que estamos discutindo
aqui.
Purinas estabelecem pontes de hidrogênio
com timinas, mas não com outras purinas; no caso da adenina, ela
somente estabelecerá este tipo de ligação com a timina, enquanto que a
guanina estabelecerá ligações de hidrogênio com a citosina. Dizer que a
adenina se “combina” com a timina é uma ATROCIDADE,
algo que faz um químico colocar as mãos entre as pernas e dizer
“UUUUUUUFFFFFFFFFF”. Combinação infere em uma reação química. Se existe
reação química (ou, como alguns idiotas nos colégios estão chamando:
transformação química), então haverá a produção de novos componentes.
Não há. Adenina continuará sendo adenina, timina continuará sendo timina
e jornalista da Isto É continuará sendo imbecil.
O jornalismo científico brasileiro é um
lixo! Publica-se qualquer besteira sem o menor critério, sem a menor
responsabilidade. Um outro exemplo que ilustra isso foi postado pelo
Carlos Hotta do
Brontossauros no meu Jardim,
onde ele mostra a indignação que todos nós, cientistas e amantes do
conhecimento, temos quando vemos estas arbitrariedades. Em sua postagem
Revista Veja #FAIL ao quadrado!, ele mostra a irresponsabilidade da
Veja (curiosamente, da mesma editora que publica a
Isto É) ao não ficar só informando errado, mas se sentindo no arrogante direito a não informar direito, soltando a seguinte pérola:
(…) Por não ser uma revista
científica, VEJA pode sim representar os genes como bolinhas.
Cometeríamos erro se tivéssemos trocado os genes pelo DNA ou coisas do
gênero. As imagens publicadas foram obtidas em bancos de imagens e estão
identificadas da mesma forma como aparecem em VEJA.
Aqui vemos o total compromisso da Veja Multiuso (extensivo à Isto É)
em apenas o lucro, e não informar. Não se sentem na obrigação de
informar direito, então qual obrigação os prende em publicar outras
notícias com acurácia e seriedade? É uma vergonha que isso exista nesse
país, pois, ao meu ver, deveriam responder processo por alienação
cultural. Realmente, são revistas independentes. Elas não dependem de
veracidade em suas redações para fazer sucesso. Dependem de uma
população de pseudoleitores.
Para você, que quer saber exatamente o que a
New Scientist trouxe, e que os vendedores de jornal ignoraram, o link é
ESTE, e quando alguém o olhar com superioridade, citando a
Veja ou
Isto É, como fonte de informação, pode rir à vontade que eu deixo.
Andre:ceticismo.net
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