“Quando vejo essas ilhas visíveis umas desde as outras e possuindo apenas uma quantidade escassa de animais, habitadas por essas aves mas ligeiramente distintas em sua estrutura e ocupando o mesmo lugar na natureza, devo suspeitar de que são apenas variedades … Se existe fundamento para essas observações, então a zoologia dos arquipélagos valerá a pena ser examinada, pois tais fatos enfraqueceriam a estabilidade das espécies.”
domingo, 3 de abril de 2011
Porque Darwin rejeitou o Design Inteligente
Um
dos sinais de uma teoria científica verdadeiramente revolucionária é o
fato de demorar muito para ser aceita pela maioria das pessoas. Foi
apenas recentemente que o Vaticano admitiu ter errado na infame
condenação a Galileu, em 1633, por sua defesa da teoria de que a Terra
gira em torno do Sol. Do mesmo modo, hoje, 150 anos após primeiro serem
publicadas, as teorias de Charles Darwin continuam a suscitar
hostilidade em muitos países, devido à rejeição por Darwin da idéia de
que a vida manifesta um propósito inteligente.
É irônico o fato de que o próprio
Darwin, em certa época, esteve fascinado pela teoria de que todas as
espécies surgem em função de um design inteligente -a mesma teoria que,
mais tarde, ele procurou eliminar da ciência em seu livro “A Origem das
Espécies” (1859).
Popularizada no século 17, essa doutrina
buscava unir uma celebração da obra de Deus com o estudo da ciência.
Esses argumentos alcançaram seu ápice nos escritos do reverendo William
Paley, que expôs suas idéias em “Teologia Natural” (1802). As muitas
provas que ele apresentou em favor do design inteligente fascinaram e
convenceram o jovem Darwin.
O que desencadeou a dramática mudança de
opinião de Darwin em relação à origem das espécies foi a viagem de
cinco anos que ele fez em volta ao mundo no navio “HMS Beagle”, e,
especialmente, sua visita de cinco semanas às ilhas Galápagos em
setembro e outubro de 1835. Reza a lenda que Darwin converteu-se à
teoria da evolução durante essa visita breve, vivendo algo como um
momento “eureca!”. A história real da conversão de Darwin, que só se deu
um ano e meio mais tarde, após seu retorno à Inglaterra, nos diz muito
mais sobre como a ciência é feita de fato, especialmente sobre como a
teoria guia a observação e prepara a mente e como é necessária
persistência obstinada para transformar teorias controversas em fatos
aceitos.
Durante a permanência de Darwin nas
Galápagos, a teoria criacionista o preparou para aquilo que ele observou
e compreendeu nas ilhas. Essa teoria também ditou o que ele deixou de
observar e compreender. Num primeiro momento, ele esforçou-se com
diligência para conciliar com o paradigma criacionista as criaturas
novas e estranhas que encontrou naquele arquipélago isolado. Segundo
essa teoria, diferentes “centros de criação” explicavam por que a flora e
a fauna da Terra diferiam de uma região a outra -ou de um continente a
outro. Darwin ainda não se dera conta de que uma parcela do planeta tão
minúscula quanto o arquipélago de Galápagos poderia ser, ela própria, um
“centro de criação”.
Certos fatos inesperados relativos a
Galápagos solaparam a credibilidade de qualquer explicação criacionista
daquilo que Darwin, mais tarde, descreveria como “o mistério dos
mistérios -o primeiro surgimento de novos seres nesta terra”. Em
particular, várias espécies distintas evoluíram ao longo do tempo em
cada uma das ilhas do grupo das Galápagos, de acordo com o povoamento
dessas ilhas por colonos ocasionais que ali conseguiram chegar desde a
América Central ou do Sul. Darwin foi alertado para essa possibilidade
pelo vice-governador das ilhas, Nicholas Lawson, que insistiu que “as
tartarugas das diferentes ilhas diferem entre elas, e que ele poderá
perceber com certeza de que ilha qualquer uma for trazida”.
Num primeiro momento, Darwin não deu
atenção às observações de Lawson, ainda tendo a mente dominada pela
teoria criacionista. Ela dizia que as espécies podem modificar-se, e se
modificam, reagindo aos ambientes locais. Como um elástico que resiste
ao ser esticado, qualquer modificação do tipo específico e supostamente
imutável que fosse verificada entre as variedades era vista como desvio
temporário.
Devido à sua visão criacionista, durante
sua estadia nas Galápagos, Darwin não coletou um espécime sequer de
tartaruga-gigante para finalidades científicas. Em vez disso, as 48
tartarugas capturadas pelo Beagle na ilha de San Cristóbal foram mais
tarde comidas por Darwin e seus companheiros de navio, sendo suas
carapaças atiradas ao mar.
Essa mesma mentalidade criacionista
ajuda a explicar porque, num primeiro momento, Darwin deixou de
compreender o mais célebre exemplo das Galápagos da evolução em ação: os
famosos tentilhões de Darwin.
Quatorze espécies de tentilhões se
desenvolveram nas Galápagos a partir da forma ancestral encontrada nas
Américas Central e do Sul. Nos últimos 2 milhões de anos, esse processo
de evolução resultou numa radiação adaptativa tão impressionante em
nichos ecológicos diversos que algumas dessas espécies não se parecem
com tentilhões típicos. Num primeiro momento, Darwin pensou que algumas
delas nem sequer fossem tentilhões.
O caso dos tentilhões-das-galápagos
confundiu Darwin a tal ponto que, no momento em que capturou os
pássaros, ele não se deu conta de que todas as espécies eram
estreitamente aparentadas ou que o número de espécies em um grupo de
aves poderia resultar do fato de elas terem evoluído em ilhas
diferentes. Por isso, ele não fez qualquer esforço para classificar suas
coleções ornitológicas por ilha -um erro que lamentou sinceramente mais
tarde.
Darwin tampouco teve a oportunidade de
observar esses tentilhões de maneira suficientemente detalhada para
aperceber-se de que os tamanhos e formatos de seus bicos guardavam
relação estreita com suas dietas -um “insight” importante que a lenda
equivocadamente lhe atribui.
Apesar de ter estado armado de uma
teoria inadequada durante sua estadia em Galápagos, Darwin era um
naturalista bom demais para não observar que os quatro espécimes de
“mockingbirds” que coletou, cada uma de uma ilha diferente, ou eram
variedades ou espécies distintas. Não sendo ornitólogo, Darwin não sabia
ao certo como interpretar essa anomalia. Em julho de 1836, nove meses
após sua visita às Galápagos, ele refletiu sobre o caso dos
“mockingbirds” e recordou o que lhe tinha sido dito sobre as tartarugas:
“Quando vejo essas ilhas visíveis umas desde as outras e possuindo apenas uma quantidade escassa de animais, habitadas por essas aves mas ligeiramente distintas em sua estrutura e ocupando o mesmo lugar na natureza, devo suspeitar de que são apenas variedades … Se existe fundamento para essas observações, então a zoologia dos arquipélagos valerá a pena ser examinada, pois tais fatos enfraqueceriam a estabilidade das espécies.”
“Quando vejo essas ilhas visíveis umas desde as outras e possuindo apenas uma quantidade escassa de animais, habitadas por essas aves mas ligeiramente distintas em sua estrutura e ocupando o mesmo lugar na natureza, devo suspeitar de que são apenas variedades … Se existe fundamento para essas observações, então a zoologia dos arquipélagos valerá a pena ser examinada, pois tais fatos enfraqueceriam a estabilidade das espécies.”
A chave para interpretar esse trecho
célebre -que aventa a revolução darwinista mas em seguida afasta-se
dela- está na frase “devo suspeitar de que são apenas variedades”,
premissa que Darwin compreendia ser plenamente coerente com a teoria
criacionista.
O que o impedia de dar o passo crucial
da ortodoxia científica para a heterodoxia era a ausência de informações
sobre a classificação ornitológica correta, algo que só lhe estaria
disponível após seu retorno à Inglaterra.
Darwin retornou à Inglaterra em 2 de
outubro de 1836. Três meses depois, deixou suas coleções de aves com
John Gould, ornitólogo da Sociedade Zoológica de Londres. Gould
imediatamente se deu conta da natureza extraordinária dos espécimes
colhidos por Darwin nas Galápagos. Em março de 1837, Gould informou
Darwin de que três de seus quatro espécimes de “mockingbird” eram
espécies distintas, até então desconhecidas da ciência. Gould também
informou a Darwin que sua coleção incluía 13 ou possivelmente 14
espécies de tentilhões muito incomuns. De repente, após as análises
taxonômicas de Gould, as Galápagos se haviam convertido num “centro de
criação” distinto.
As conclusões de Gould parecem ter
deixado Darwin estarrecido. Ele rapidamente se deu conta de que, se
Gould estivesse certo, a barreira entre as espécies distintas tinha sido
de alguma maneira rompida por esses pássaros, isolados nas diferentes
ilhas. A evolução gradual graças ao isolamento geográfico era a única
explicação plausível, a não ser que se pensasse que Deus, como um
jardineiro obsessivo-compulsivo, tivesse ido de uma ilha a outra no
arquipélago, caprichosamente criando espécies separadas mas
estreitamente aliadas, com a intenção de ocupar os mesmos nichos
ecológicos.
Reforçado por uma perspectiva evolutiva
da natureza, Darwin foi capaz de enxergar os tentilhões sob uma ótica
radicalmente nova. Apenas agora ele passou a compreender a extensão de
seu descuido anterior, quando deixou de rotular por ilha a maior parte
das aves que trouxera das Galápagos.
Felizmente, Darwin sabia que três outros
colecionadores que tinham viajado no Beagle (o capitão FitzRoy entre
eles) também tinham coletado espécimes. E todos esses espécimes tinham
sido rotulados segundo a ilha de sua procedência. É sintomático que
tenham sido os não-cientistas do Beagle, que não eram movidos por uma
teoria, como Darwin, que registraram as evidências científicas que
Darwin, partindo de uma abordagem criacionista, havia visto como sendo
supérfluas.
Darwin passou a entender que o
isolamento geográfico era uma parte crucial da resposta quanto a como as
espécies se transformam no decorrer o tempo. Mas o isolamento, por si
só, não bastava para explicar as adaptações das espécies a seus
ambientes locais.
Malthus explica
Depois de estudar e rejeitar uma série
de hipóteses, Darwin, em setembro de 1838, leu por acaso a edição de
1826 de “Ensaio sobre o Princípio da População”, de Thomas Malthus. Este
argumentava que as populações têm a tendência inata a crescer
geometricamente. Na natureza, porém, a oferta de alimentos é limitada,
de modo que a maioria da prole não sobrevive, sendo morta por
predadores, fome e doenças.
Ao ler o livro de Malthus, Darwin se deu
conta imediatamente de que, na eterna luta pela sobrevivência,
variações ligeiras benéficas tenderiam a ser naturalmente selecionadas,
levando à sobrevivência maior e, com isso, a um aumento nas
características adaptativas, do mesmo modo em que o criador de animais
domesticados obtém características desejadas selecionando as qualidades
valorizadas nos animais. “Aqui, então, finalmente encontrei uma teoria
com a qual trabalhar”, observou Darwin em sua “Autobiografia”. Ali,
também, estava uma resposta digna de crédito a William Paley. Darwin
percebeu que a seleção natural não era outra coisa senão o “projetista”
de Paley.
Olhando através da lente poderosa da
evolução pela seleção natural, Darwin então começou a reexaminar as
premissas básicas do criacionismo e a comparar as previsões que se
fariam com base nessas duas teorias radicalmente distintas.
Quanto mais extenso se tornava seu
reestudo, mais ele foi compreendendo que o design inteligente era
contradito de maneira avassaladora pelas evidências disponíveis. A
reavaliação feita por Darwin atingiu seu ápice 22 anos mais tarde com
“Sobre a Origem das Espécies por Meio da Seleção Natural”, livro que o
próprio Darwin descreveu, corretamente, perto de seu final, como “um só
longo argumento”. Era igualmente um argumento contra o criacionismo e,
especialmente, contra o design inteligente.
As evidências relativas à distribuição
geográfica, especialmente das ilhas oceânicas e suas relações biológicas
com os continentes mais próximos, desempenham papel substancial no
argumento de Darwin.
As ilhas Galápagos, por exemplo, abrigam
várias espécies de animais e plantas estreitamente aparentadas com as
do vizinho continente americano; no entanto, as características
ambientais dessas ilhas não se assemelham em nada às das partes mais
próximas do continente, que são tropicais.
Contrastando com isso, o árido ambiente
vulcânico das Galápagos se assemelha estreitamente ao das ilhas de Cabo
Verde, a 650 km da África. No entanto, a flora e a fauna de Cabo Verde
guardam mais semelhança com espécies que vivem no continente africano,
não com as das Galápagos. Por que um possível projetista inteligente,
indagou Darwin, colocaria dois carimbos criativos completamente
diferentes -um africano e outro americano- sobre espécies que vivem em
ambientes quase idênticos e ocupam nichos ecológicos semelhantes? Não
fazia sentido.
Como Darwin trabalhou durante 20 anos
sobre rascunhos da obra que acabaria virando “A Origem das Espécies”,
ele conseguiu explicar o mundo natural de uma maneira como ninguém nunca
fizera antes. Em última análise, o que sua transformação de
criacionista em evolucionista revela sobre ela -e sobre a ciência, de
modo mais geral- é que a melhor ciência é feita a serviço de uma teoria
realmente boa.
FRANK J. SULLOWAY é historiador da
ciência, estudioso de Darwin e professor visitante do Departamento de
Psicologia da Universidade da Califórnia em Berkeley. Em 1968, refez a
viagem do Beagle para produzir um documentário. Este texto foi primeiro
publicado, em formato diferente, pela Vintage Books em “Intelligent
Thought”, editado por John Brockman
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