Junho/1990
domingo, 3 de abril de 2011
A origem dos idiomas
Os
3 mil idiomas falados hoje no mundo podem ter a mesma origem. Na busca
dessa lingua-mãe, os pesquisadores descobrem semelhanças incríveis que
talvez não sejam coincidências.
Recolhido a seus aposentos numa certa
noite do final do século VII a.C., Psamético, um dos últimos faraós do
Egito, que reinou de 664 a 610 a.C., refletia sobre as línguas que os
homens falavam. Sua riqueza e diversidade, as semelhanças e as
diferenças entre as palavras, as pronúncias, as inflexões de voz, tudo o
fascinava – principalmente a idéia de que essa multiplicidade tinha uma
origem comum, uma língua mãe falada por toda a humanidade num tempo
muito remoto, como afirmavam as lendas da época.
O faraó imaginou então uma experiência
engenhosa e cruel. Convencido de que, se ninguém ensinasse os bebês a
falar, eles se expressariam naquele idioma original, determinou que dois
irmãos gêmeos fossem tirados da mãe logo ao nascer e entregues a um
pastor para que os criasse. O pastor recebeu ordens severas, sob pena de
morte, de jamais pronunciar qualquer palavra na presença das crianças.
Quando completaram 2 anos, o faraó
mandou que se deixasse de alimentá-las, na suposição de que a pressão da
fome faria com que pedissem comida em sua “língua natural”. Não se sabe
bem o que aconteceu, mas tudo indica que o pastor, movido pela
compaixão, não fez exatamente o que lhe havia sido ordenado. Pois o
inverossímil relato enviado ao faraó informava que um dos meninos,
faminto, havia pedido pão em cíntio, idioma falado antigamente na região
que viria a ser a Ucrânia, na União Soviética. Assim, satisfeito com o
desfecho da impiedosa pesquisa, Psamético decretou que o cíntio era a
língua original da humanidade. Por incrível que pareça, a experiência
seria repetida dezenove séculos mais tarde. O idealizador foi o rei
germânico Frederico II (1194-1250), que pelo visto não se convenceu das
conclusões do faraó. Certamente vigiado mais de perto, o experimento
resultou no inevitável: os dois gêmeos morreram.
De Psamético I aos dias de hoje,
passando por Frederico II, muitos outros homens igualmente curiosos se
perguntaram qual teria sido e como seria possível reviver o idioma do
qual brotaram todos os demais. Essa indagação se transformou
modernamente numa área de pesquisa de ponta em Lingüística, a ciência
que estuda a evolução das línguas, suas estruturas e possíveis
inter-relações no quadro histórico e social. Os estudos viriam confirmar
a crença dos antigos. Segundo o lingüista Cidmar Teodoro Pais, da
Universidade de São Paulo, a comparação entre as várias línguas do
planeta, tanto as ainda faladas quanto as já desaparecidas, revela
efetivamente algumas características comuns que apontam para a possível
existência de uma língua primeira, mãe de todas. Nesse ponto, a
Lingüística parece se afinar com as mitologias que descrevem a dispersão
das línguas pelo mundo.
A mais conhecida delas é a história
bíblica da Torre de Babel. Segundo o Antigo Testamento, a multiplicação
das línguas foi um castigo de Deus à pretensão dos homens de construir
uma torre cujo topo penetrasse no céu. As lendas chinesas contam que a
divisão da língua original fez com que o universo “se desviasse do
caminho certo”. Na mitologia persa, Arimã, o espírito do mal, pulverizou
a linguagem dos homens em trinta idiomas. E um dos livros sagrados dos
maias, o Popol Vuh, lamenta: “Aqui as línguas da tribo mudaram – sua
fala ficou diferente. (…) Nossa língua era uma quando partimos de Tulán.
Ai! Esquecemos nossa fala”.
Hoje muitos lingüistas estão empenhados
em passar da lenda à verdade histórica, mas a tarefa é de extrema
dificuldade. O exercício da Lingüística como ciência, por sinal, está
longe de ser uma atividade simples ou compensadora. Ao contrário,
lingüistas freqüentemente passam anônimos pelo mundo, ao contrário de
outros escavadores do passado humano, como os arqueólogos e
paleontólogos. Grandes nomes da Lingüística deste século, os franceses
Ferdinand de Saussure, Émile Benveniste e o americano Noam Chomsky são
ilustres desconhecidos para o público leigo. “Definitivamente”,
resigna-se o lingüista Flávio di Giorgi, da Universidade Católica de São
Paulo, “esta ciência que se faz debruçado sobre manuscritos antigos,
inscrições ou reconstituições de línguas não tem qualquer vocação para
ser popular.”
Para quem gosta, porém. é um prato
cheio. “Já me diverti muito estudando Lingüística”, conta Teodoro Pais,
um professor de óculos de lentes grossas, fala mansa e hábitos
metódicos, no ramo há 30 de seus 50 anos de vida. Afinal, os atuais 5
bilhões de seres humanos se comunicam recorrendo a um estoque de cerca
de 3 mil línguas espalhadas pelos quatro cantos do mundo. Essas, mais
outros milhares já esquecidas que deixaram algum tipo de registro
escrito, foram agrupadas em doze famílias lingüísticas importantes e
cinqüenta menos importantes.
Essas duas grandes arrumações familiares
aparentemente nada têm em comum – e eis aí a suprema dificuldade dos
pesquisadores: eles farejam semelhanças onde o que salta aos olhos são
diferenças. As buscas, contudo, têm o estímulo das barreiras já
derrubadas. Quem diria, por exemplo, que há algum parentesco, embora
remoto, entre o português e o sânscrito, uma língua falada na Índia há
milhares de anos, e ainda a sua versão moderna, o hindi? E, no entanto, o
parentesco existe.
Descobriram os lingüistas que esses
idiomas descendem de um mesmo e único tronco, o indo-europeu,
pertencendo portanto à grande família das línguas indo-européias que
inclui também o grego, o armênio, o russo, o alemão, entre muitas
outras. Hoje, aproximadamente a metade da população mundial tem como
língua nativa um idioma dessa família. Foi justamente a descoberta do
parentesco entre o sânscrito e as línguas européias, no século XVIII,
que fez nascer a Lingüística histórica, dedicada a investigar essas
similaridades. A tese da origem comum foi proposta em 1786 por Sir
William Jones, um jurista inglês cujo passatempo era estudar as culturas
orientais. A partir de então, os lingüistas europeus passaram a se
dedicar a duas tarefas: uma, refazer passo a passo a árvore genealógica
dessa família, trilhando a história de sua evolução, outra, reconstituir
a língua perdida que dera origem a todas, o indo-europeu. Esse trabalho
não se faz às cegas, ou por ensaio e erro. A pesquisa percorre o
caminho aberto pelas leis lingüísticas, resultantes de outros estudos,
que mostram como os sons e os sentidos das palavras evoluem com o tempo,
promovendo a transformação das línguas. Essas leis são estabelecidas a
partir de comparações entre palavras. Por exemplo, do latim lacte e nocte
vieram as formas leite e noite. Comparando-se os termos, percebe-se que
o “c” das palavras em latim virou “i” nos vocábulos em português. No
século passado, o trabalho dos lingüistas se apoiou fortemente numa lei
formulada em 1822 pelo alemão Jacob Grimm (1785-1863), mais conhecido
pelos contos de fadas que escreveu com seu irmão Wilhelm, entre os quais
Branca de Neve e os sete anões.
A lei de Grimm afirmava ser possível
prever como alguns grupos de consoantes se modificariam com o tempo nas
línguas indo-européias. Entre outras coisas, ele dizia que uma consoante
forte ou sonora (pronunciada fazendo-se vibrar as cordas vocais) tendia
a ser substituída por sua equivalente fraca ou surda (pronunciada sem
vibração das cordas vocais). O “b” e o “p”constituem um par desse tipo,
assim como o “d” e o “t”. “B” e “d ” são fortes, “p” e “t” são fracas,
como se pode comprovar, pronunciando-os com a mão na garganta. Com base
nessas leis, foi possível mostrar, por exemplo, que a forma dhar em
sânscrito, que significa puxar, trazer, originou o inglês draw, o alemão
tragen, o latim trahere e o português trazer, todos
com significado semelhante. O “d” da palavra em sânscrito virou “t” nas
outras línguas. Pode-se concluir ainda que a palavra em inglês evoluiu
menos que nas demais, pois se manteve fiel ao som original do sânscrito.
Os lingüistas puderam assim “estabelecer
um modelo confiável das relações familiares entre as línguas”, conta o
paulista di Giorgi, “construindo um modelo bastante aceitável do que
teria sido a língua ancestral – o proto-indoeuropeu.” O que se
ambiciona, porém é uma descoberta muito maior. Dispondo das
reconstituições dos ancestrais de grande parte das famílias mais
importantes, os lingüistas tentam achar relações entre as próprias
protolínguas. O primeiro e maior obstáculo é justamente o material de
que dispõem. Apesar de resultarem de cuidadosa montagem científica, as
protolínguas não passam de modelos, pouco mais que sombras do que terão
sido as línguas antigas. Algo como um dinossauro de museu em relação ao
bicho verdadeiro.
“Nesse ponto, a análise avança com base
na cultura, pois não se dispõem mais de documentos escritos”, explica
Teodoro Pais, da USP, que conhece sânscrito e gostava de trocar cartas
com os colegas em proto-indo-europeu. Toda língua produz e reflete
cultura e não é à toa que, fundamentados nas palavras reconstituídas da
protolíngua, os pesquisadores podem inferir com razoável margem de
confiança os hábitos do povo que a falava. Com esses dados é possível
construir pontes até outros grupos aparentemente não relacionados. Por
exemplo, tanto nas línguas indo-européias quanto no grupo semítico, as
palavras homem e terra originalmente se confundem. Em hebraico, são
respectivamente adam e adamah, ambas derivadas de uma raiz comum em proto-semítico.
Em proto-indo-europeu, a palavra dheghom
tem os dois significados. A parte final originou o latim homo (homem) e
humus (terra, solo). Assim, embora não haja parentesco etimológico
algum entre as palavras semíticas e indo-européias, é clara a semelhança
quanto à maneira de pensar e classificar o mundo entre as populações de
ambos os grupos lingüísticos. As mais recentes descobertas da
Arqueologia e até da Genética conduzem à mesma idéia: é possível agrupar
as grandes famílias em famílias ainda maiores, um avanço formidável na
busca da língua-mãe. Há mais de vinte anos, os lingüistas russos
Vladislav M. Illich Svitch e Aron Dolgopolsky propuseram que o
indo-europeu, o semítico e a família das línguas dravídicas da Índia
poderiam fazer parte de uma superfamília, chamada então nostrática. Na
época, o trabalho foi encarado com desconfiança. Depois, ganhou alguma
aceitação nos meios científicos. Há pouco, enfim, uma descoberta da
Genética parece ter dado nova projeção ao trabalho dos soviéticos.
A partir de análises de grupos
sangüineos de várias populações, a equipe do geneticista Allan C.
Wilson, da Universidade da Califórnia. em Berkeley, concluiu que há um
grande parentesco genético entre os falantes das línguas indo-européias,
semíticas e dravídicas. Isso quer dizer que, ocupando uma vastíssima
porção do planeta, da Ásia às Américas, eles têm mais em comum entre si
do que, digamos, com os japoneses ou os esquimós. Essa descoberta
coincide de forma espantosa com a teoria da superfamília nostrática. Em
outra frente, pesquisas arqueológicas e lingüísticas estão finalmente
determinando o local de origem do proto-indo-europeu-um dos objetivos
dos lingüistas desde o século passado.
Até os anos 40, os pesquisadores
acreditavam que o berço do indo-europeu estava situado no norte da
Alemanha e da Polônia. Essa teoria, sustentada por deduções bastante
ingênuas, foi usada nada ingenuamente pelos nazistas para confirmar sua
teoria de que a raça tida como pura dos arianos surgira ali mesmo. Os
lingüistas imaginavam que, se fosse possível estabelecer um pequeno
vocabulário comum à maioria da línguas indo-européias, estariam diante
de algumas palavras localizadoras, sobreviventes do proto-indo-europeu,
em cuja terra natal seriam ainda faladas. Uma dessas tentativas
estabeleceu três palavras localizadoras – tartaruga, faia (uma árvore) e
salmão. O único lugar onde todas elas podiam ser encontradas era uma
área da Europa Central entre os rios Elba, Oder e Reno, na Alemanha, de
um lado, e o Vístula, na Polônia, de outro. Ali havia salmões,
tartarugas e faias. Não havia tartarugas ao norte da fronteira alemã,
faias a leste do Vístula nem salmões a oeste do Reno. O método acabou
desacreditado, pois muitas das palavras localizadoras estão sujeitas a
mudanças de sentido, não sendo portanto instrumentos confiáveis.
As pesquisas mais recentes afirmam que o
proto-indo-europeu era falado há cerca de 6 mil anos na Ásia e não na
Europa Central. Dois trabalhos, um do americano Colin Renfrew, outro dos
soviéticos Thomas Gamkrelidze e V.V. Ivanov, concordam ao apontar o
berço do indo-europeu como o planalto da Anatólia, uma região que vai da
Turquia à República da Armênia, que faz parte da União Soviética. Dali,
movidos pela busca de terras férteis e de novos campos de caça, os
indo-europeus migraram, há uns cinco milênios, seja para a Europa, seja
para a Ásia. A corrida à procura da língua-mãe está apenas começando mas
desde já nessa aventura científica não faltam algumas descobertas
insólitas.
Uma delas é a incrível semelhança de
palavras entre as línguas indígenas da América pré-colombiana e idiomas
falados pelos povos do Mediterrâneo e Oriente Médio. Por exemplo, os
índios araucanos do Chile usam a mesma palavra que os antigos egípcios,
anta, para designar o Sol e a mesma palavra que os antigos sumérios,
bal, para machado. A palavra araucana para cidade é kar, semelhante a cidade em fenício, que é kart. Há mais: a palavra maia thallac, que designa “o que não é sólido”, é semelhante a Thallath, o nome da deusa do caos na antiga Babilônia. Curiosamente, thallac lembra ainda thalassa, mar em grego, e Tlaloc,
o deus asteca da chuva. Shapash, o deus-sol dos fenícios, é também o
deus-sol dos índios klamath, no Oregon, Estados Unidos. Essas
misteriosas semelhanças escapam a qualquer tentativa de classificação.
Mas, como disse certa vez Albert Einstein, o mistério é a fonte de toda
verdadeira ciência. Desde que, para resolvê-lo, não seja preciso negar
comida a crianças, como fizeram um faraó egípcio e um rei germânico.
Super Interessante
Junho/1990
Junho/1990
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário