A história de Deus foi escrita pelos
homens. Mas quem é o autor do livro mais influente de todos os tempos?
As respostas são surpreendentes - e vão mudar sua maneira de ver as
Escrituras
por José Francisco Botelho
Fonte:
http://super.abril.com.br/religiao/quem-escreveu-biblia-447888.shtml
Em algum lugar do Oriente Médio, por volta do século 10 a.C., uma pessoa
decidiu escrever um livro. Pegou uma pena, nanquim e folhas de papiro
(uma planta importada do Egito) e começou a contar uma história mágica,
diferente de tudo o que já havia sido escrito. Era tão forte, mas tão
forte, que virou uma obsessão. Durante os 1 000 anos seguintes, outras
pessoas continuariam reescrevendo, rasurando e compilando aquele texto,
que viria a se tornar o maior best seller de todos os tempos: a Bíblia.
Ela apresentou uma teoria para o surgimento do homem, trouxe os
fundamentos do judaísmo e do cristianismo, influenciou o surgimento do
islã, mudou a história da arte – sem a Bíblia, não existiriam os
afrescos de Michelangelo nem os quadros de Leonardo da Vinci – e nos
legou noções básicas da vida moderna, como os direitos humanos e o
livre-arbítrio. Mas quem escreveu, afinal, o livro mais importante que a
humanidade já viu? Quem eram e o que pensavam essas pessoas? Como
criaram o enredo, e quem ditou a voz e o estilo de Deus? O que está na
Bíblia deve ser levado ao pé da letra, o que até hoje provoca conflitos
armados? A resposta tradicional você já conhece: segundo a tradição
judaico-cristã, o autor da Bíblia é o próprio Todo-Poderoso. E ponto
final. Mas a verdade é um pouco mais complexa que isso.
A própria Igreja admite que a revelação divina só veio até nós por meio
de mãos humanas. A palavra do Senhor é sagrada, mas foi escrita por
reles mortais. Como não sobraram vestígios nem evidências concretas da
maioria deles, a chave para encontrá-los está na própria Bíblia. Mas ela
não é um simples livro: imagine as Escrituras como uma biblioteca
inteira, que guarda textos montados pelo tempo, pela história e pela fé.
Aliás, o termo “Bíblia”, que usamos no singular, vem do plural grego ta
biblia ta hagia – “os livros sagrados”. A tradição religiosa sempre
sustentou que cada livro bíblico foi escrito por um autor claramente
identificável. Os 5 primeiros livros do Antigo Testamento (que no
judaísmo se chamam Torá e no catolicismo Pentateuco) teriam sido
escritos pelo profeta Moisés por volta de 1200 a.C. Os Salmos seriam
obra do rei Davi, o autor de Juízes seria o profeta Samuel, e assim por
diante. Hoje, a maioria dos estudiosos acredita que os livros sagrados
foram um trabalho coletivo. E há uma boa explicação para isso.
As histórias da Bíblia derivam de lendas surgidas na chamada Terra de
Canaã, que hoje corresponde a Líbano, Palestina, Israel e pedaços da
Jordânia, do Egito e da Síria. Durante séculos acreditou-se que Canaã
fora dominada pelos hebreus. Mas descobertas recentes da arqueologia
revelam que, na maior parte do tempo, Canaã não foi um Estado, mas uma
terra sem fronteiras habitada por diversos povos – os hebreus eram
apenas uma entre muitas tribos que andavam por ali. Por isso, sua
cultura e seus escritos foram fortemente influenciadas por vizinhos como
os cananeus, que viviam ali desde o ano 5000 a.C. E eles não foram os
únicos a influenciar as histórias do livro sagrado.
As raízes da árvore bíblica também remontam aos sumérios, antigos
habitantes do atual Iraque, que no 3o milênio a.C. escreveram a Epopéia
de Gilgamesh. Essa história, protagonizada pelo semideus Gilgamesh,
menciona uma enchente que devasta o mundo (e da qual algumas pessoas se
salvam construindo um barco). Notou semelhanças com a Bíblia e seus
textos sobre o dilúvio, a arca de Noé, o fato de Cristo ser humano e
divino ao mesmo tempo? Não é mera coincidência. “A Bíblia era uma obra
aberta, com influências de muitas culturas”, afirma o especialista em
história antiga Anderson Zalewsky Vargas, da UFRGS.
Foi entre os séculos 10 e 9 a.C. que os escritores hebreus começaram a
colocar essa sopa multicultural no papel. Isso aconteceu após o reinado
de Davi, que teria unificado as tribos hebraicas num pequeno e frágil
reino por volta do ano 1000 a.C. A primeira versão das Escrituras foi
redigida nessa época e corresponde à maior parte do que hoje são o
Gênesis e o Êxodo. Nesses livros, o tema principal é a relação passional
(e às vezes conflituosa) entre Deus e os homens. Só que, logo no começo
da Beeblia, já existiu uma divergência sobre o papel do homem e do
Senhor na história toda. Isso porque o personagem principal, Deus, é
tratado por dois nomes diferentes.
Em alguns trechos ele é chamado pelo nome próprio, Yahweh – traduzido em
português como Javé ou Jeová. É um tratamento informal, como se o autor
fosse íntimo de Deus. Em outros pontos, o Todo-Poderoso é chamado de
Elohim, um título respeitoso e distante (que pode ser traduzido
simplesmente como “Deus”). Como se explica isso? Para os
fundamentalistas, não tem conversa: Moisés escreveu tudo sozinho e usou
os dois nomes simplesmente porque quis. Só que um trecho desse texto
narra a morte do próprio Moisés. Isso indica que ele não é o único
autor. Os historiadores e a maioria dos religiosos aceitam outra teoria:
esses textos tiveram pelo menos outros dois editores.
Acredita-se que os trechos que falam de Javé sejam os mais antigos,
escritos numa época em que a religiosidade era menos formal. Eles contêm
uma passagem reveladora: antes da criação do mundo, “Yahweh não
derramara chuva sobre a terra, e nem havia homem para lavrar o solo”.
Essa frase, “não havia homem para lavrar o solo”, indica que, na
primeira versão da Bíblia, o homem não era apenas mais uma criação de
Deus – ele desempenha um papel ativo e fundamental na história toda.
“Nesse relato, o homem é co-criador do mundo”, diz o teólogo Humberto
Gonçalves, do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, no Rio Grande do
Sul.
Pelo nome que usa para se referir a Deus (Javé), o autor desses trechos
foi apelidado de Javista. Já o outro autor, que teria vivido por volta
de 850 a.C., é apelidado de Eloísta. Mais sisudo e religioso, ele compôs
uma narrativa bastante diferente. Ao contrário do Deus-Javé, que fez o
mundo num único dia, o Deus-Elohim levou 6 (e descansou no 7o). Nessa
história, a criação é um ato exclusivo de Deus, e o homem surge apenas
no 6o dia, junto aos animais.
Tempos mais tarde, os dois relatos foram misturados por editores
anônimos – e a narrativa do Eloísta, mais comportada, foi parar no
início das Escrituras. Começando por aquela frase incrivelmente simples e
poderosa, notória até entre quem nunca leu a Bíblia: “E, no início,
Deus criou o céu e a terra...”
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Ahura Mazda x Arimã |
Em 589 a.C., Jerusalém foi arrasada pelos babilônios, e grande parte da
população foi aprisionada e levada para o atual Iraque. Décadas depois,
os hebreus foram libertados por Ciro, senhor do Império Persa – um
conquistador “esclarecido”, que tinha tolerância religiosa. Aos poucos,
os hebreus retornaram a Canaã – mas com sua fé transformada. Agora os
sacerdotes judaicos rejeitavam o politeísmo e diziam que Javé era o
único e absoluto deus do Universo. “O monoteísmo pode ter surgido pelo
contato com os persas – a religião deles, o masdeísmo, pregava a
existência de um deus bondoso, Ahura Mazda, em constante combate contra
um deus maligno, Arimã. Essa noção se reflete até na idéia cristã de um
combate entre Deus e o Diabo”, afirma Zalewsky, da UFRGS.
A versão final do Pentateuco surgiu por volta de 389 a.C. Nessa época,
um religioso chamado Esdras liderou um grupo de sacerdotes que mudaram
radicalmente o judaísmo – a começar por suas escrituras. Eles editaram
os livros anteriores e escreveram a maior parte dos livros Deuteronômio,
Números, Levítico e também um dos pontos altos da Bíblia: os 10
Mandamentos. Além de afirmar o monoteísmo sem sombra de dúvidas (“amarás
a Deus acima de todas as coisas” é o primeiro mandamento), a reforma
conduzida por Esdras impunha leis religiosas bem rígidas, como a
proibição do casamento entre hebreus e não-hebreus. Algumas das leis
encontradas no Levítico se assemelham à ética moderna dos direitos
humanos: “Se um estrangeiro vier morar convosco, não o maltrates. Ama-o
como se fosse um de vós”.
Outras passagens, no entanto, descrevem um Senhor belicoso, vingativo e
sanguinário, que ordena o extermínio de cidades inteiras – mulheres e
crianças incluídas. “Se a religião prega a compaixão, por que os textos
sagrados têm tanto ódio?”, pergunta a historiadora americana Karen
Armstrong, autora de um novo e provocativo estudo sobre a Bíblia. Para
os especialistas, a violência do Antigo Testamento é fruto dos séculos
de guerras com os assírios e os babilônios. Os autores do livro sagrado
foram influenciados por essa atmosfera de ódio, e daí surgiram as
histórias em que Deus se mostra bastante violento e até cruel. Os
redatores da Bíblia estavam extravasando sua angústia.
Por volta do ano 200 a.C., o cânone (conjunto de livros sagrados)
hebraico já estava finalizado e começou a se alastrar pelo Oriente
Médio. A primeira tradução completa do Antigo Testamento é dessa época.
Ela foi feita a mando do rei Ptolomeu 2o em Alexandria, no Egito, grande
centro cultural da época. Segundo uma lenda, essa tradução (de hebraico
para grego) foi realizada por 72 sábios judeus. Por isso, o texto é
conhecido como Septuaginta. Além da tradução grega, também surgiram
versões do Antigo Testamento no idioma aramaico – que era uma espécie de
língua franca do Oriente Médio naquela época.
Dois séculos mais tarde, a Bíblia em aramaico estava bombando: ela era a
mais lida na Judéia, na Samária e na Galiléia (províncias que formam os
atuais territórios de Israel e da Palestina). Foi aí que um jovem
judeu, grande personagem desta história, começou a se destacar. Como
Sócrates, Buda e outros pensadores que mudaram o mundo, Jesus de Nazaré
nada deixou por escrito – os primeiros textos sobre ele foram produzidos
décadas após sua morte.
E o cristianismo já nasceu perseguido: por se recusarem a cultuar os
deuses oficiais, os cristãos eram considerados subversivos pelo Império
Romano, que dominava boa parte do Oriente Médio desde o século 1 a.C.
Foi nesse clima de medo que os cristãos passaram a colocar no papel as
histórias de Jesus, que circulavam em aramaico e também em coiné – um
dialeto grego falado pelos mais pobres. “Os cristãos queriam compreender
suas origens e debater seus problemas de identidade”, diz o teólogo
Paulo Nogueira, da Universidade Metodista de São Paulo. Para fazer isso,
criaram um novo gênero literário: o evangelho. Esse termo, que vem do
grego evangélion (“boa-nova”), é um tipo de narrativa religiosa contando
os milagres, os ensinamentos e a vida do Messias.
A maioria dos evangelhos escritos nos séculos 1 e 2 desapareceu. Naquela
época, um “livro” era um amontoado de papiros avulsos, enrolados em
forma de pergaminho, podendo ser facilmente extraviados e perdidos. Mas
alguns evangelhos foram copiados e recopiados à mão, por membros da
Igreja. Até que, por volta do século 4, tomaram o formato de códice – um
conjunto de folhas de couro encadernadas, ancestral do livro moderno. O
problema é que, a essa altura do campeonato, gerações e gerações de
copiadores já haviam introduzido alterações nos textos originais – seja
por descuido, seja de propósito. “Muitos erros foram feitos nas cópias,
erros que às vezes mudaram o sentido dos textos. Em certos casos, tais
erros foram também propositais, de acordo com a teologia do escrivão”,
afirma o padre e teólogo Luigi Schiavo, da Universidade Católica de
Goiás. Quer ver um exemplo?
Sabe aquela famosa cena em que Jesus salva uma adúltera prestes a ser
apedrejada? De acordo com especialistas, esse trecho foi inserido no
Evangelho de João por algum escriba, por volta do século 3. Isso porque,
na época, o cristianismo estava cortando seu cordão umbilical com o
judaísmo. E apedrejar adúlteras é uma das leis que os
sacerdotes-escritores judeus haviam colocado no Pentateuco. A introdução
da cena em que Jesus salva a adúltera passa a idéia de que os
ensinamentos de Cristo haviam superado a Torá – e, portanto, os cristãos
já não precisavam respeitar ao pé da letra todos os ensinamentos
judeus.
A julgar pelo último livro da Bíblia cristã, o Apocalipse (que descreve o
fim do mundo), o receio de ter suas narrativas “editadas” era comum
entre os autores do Novo Testamento. No versículo 18, lê-se uma terrível
ameaça: “Se alguém fizer acréscimos às páginas deste livro, Deus o
castigará com as pragas descritas aqui”. Essa ameaça reflete bem o clima
dos primeiros séculos do cristianismo: uma verdadeira baderna
teológica, com montes de seitas defendendo idéias diferentes sobre Deus e
o Messias. A seita dos docetas, por exemplo, acreditava que Jesus não
teve um corpo físico. Ele seria um espírito, e sua crucificação e morte
não passariam – literalmente – de ilusão de ótica. Já os ebionistas
acreditavam que Jesus não nascera Filho de Deus, mas fora adotado, já
adulto, pelo Senhor. A primeira tentativa de organizar esse caos das
Escrituras ocorreu por volta de 142 – e o responsável não foi um
clérigo, mas um rico comerciante de navios chamado Marcião.
A Bíblia segundo Marcião
Ele nasceu na atual Turquia, foi para Roma, converteu-se ao
cristianismo, virou um teólogo influente e resolveu montar sua própria
seleção de textos sagrados. A Bíblia de Marcião era bem diferente da que
conhecemos hoje. Isso porque ele simpatizava com uma seita cristã hoje
desaparecida, o gnosticismo. Para os gnósticos, o Deus do Velho
Testamento não era o mesmo que enviara Jesus – na verdade, as duas
divindades seriam inimigas mortais. O Deus hebraico era monstruoso e
sanguinário, e controlava apenas o mundo material. Já o universo
espiritual seria dominado por um Deus bondoso, o pai de Jesus. A Bíblia
editada por Marcião continha apenas o Evangelho de João, 11 cartas de
Paulo e nenhuma página do Velho Testamento. Se as idéias de Marcião
tivessem triunfado, hoje as histórias de Adão e Eva no paraíso, a arca
de Noé e a travessia do mar Vermelho não fariam parte da cultura
ocidental. Mas, por volta de 170, o gnosticismo foi declarado proibido
pelas autoridades eclesiásticas, e o primeiro editor da Bíblia cristã
acabou excomungado.
Roma, até então pior inimiga dos cristãos, ia se rendendo à nova fé. Em
313, o imperador romano Constantino se aliou à Igreja. Ele pretendia
usar a força crescente da nova religião para fortalecer seu império.
Para isso, no entanto, precisava de uma fé una e sólida. A pressão de
Constantino levou os mais influentes bispos cristãos a se reunirem no
Concílio de Nicéia, em 325, para colocar ordem na casa de Deus. Ali,
surgiu o cânone do cristianismo – a lista oficial de livros que, segundo
a Igreja, realmente haviam sido inspirados por Deus.
“A escolha também era política. Um grupo afirmou seu poder e autoridade
sobre os outros”, diz o padre Luigi. Esse grupo era o dos cristãos
apostólicos, que ganharam poder ao se aliar com o Império Romano. Os
apostólicos eram, por assim dizer, o “partido do governo”. E por isso
definiram o que iria entrar, ou ser eliminado, das Escrituras.
Eles escolheram os evangelhos de Marcos, Mateus, Lucas e João para
representar a biografia oficial de Cristo, enquanto as invenções dos
docetas, dos ebionistas e de outras seitas foram excluídas, e seus
autores declarados hereges. Os textos excluídos do cânone ganharam o
nome de “apócrifos” – palavra que vem do grego apocrypha, “o que foi
ocultado”. A maioria dos apócrifos se perdeu – afinal de contas, os
escribas da Igreja não estavam interessados em recopiá-los para a
posteridade. Mas, com o surgimento da arqueologia, no século 19, pedaços
desses textos foram encontrados nas areias do Oriente Médio. É o caso
de um polêmico texto encontrado em 1886 no Egito. Ele é assinado por uma
certa “Maria” que muitos acreditam ser a Madalena, discípula de Jesus,
presente em vários trechos do Novo Testamento. O evangelho atribuído a
ela é bem feminista: Madalena é descrita como uma figura tão importante
quanto Pedro e os outros apóstolos. Nos primórdios do cristianismo, as
mulheres eram aceitas no clero – e eram, inclusive, consideradas capazes
de fazer profecias. Foi só no século 3 que o sacerdócio virou monopólio
masculino, o que explicaria a censura da apóstola e seu testemunho.
Aliás, tudo indica que Madalena não foi prostituta – idéia que teria
surgido por um erro na interpretação do livro sagrado. No ano 591, o
papa Gregório fez um sermão dizendo que Madalena e outra mulher, também
citada nas Escrituras e essa sim ex-pecadora, na verdade seriam a mesma
pessoa (em 1967, o Vaticano desfez o equívoco, limpando a reputação de
Maria).
Na evolução da Bíblia, foram aparecendo vários trechos machistas – e
suspeitos. É o caso de uma passagem atribuída ao apóstolo Paulo: “A
mulher aprenda (...) com toda a sujeição. Não permito à mulher que
ensine, nem que tenha domínio sobre o homem (...) porque Adão foi
formado primeiro, e depois Eva”. É provável que Paulo jamais tenha
escrito essas palavras – porque, na época em que ele viveu, o
cristianismo não pregava a submissão da mulher. Acredita-se que essa
parte tenha sido adicionada por algum escriba por volta do século 2.
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Constantino |
Após a conversão do imperador Constantino, o eixo do cristianismo se
deslocou do Oriente Médio para Roma. Só que, para completar a
romanização da fé, faltava um passo: traduzir a palavra de Deus para o
latim. A missão coube ao teólogo Eusebius Hyeronimus, que mais tarde
viria a ser canonizado com o nome de são Jerônimo. Sob ordens do papa
Damaso, ele viajou a Jerusalém em 406 para aprender hebraico e traduzir o
Antigo e o Novo Testamento. Não foi nada fácil: o trabalho durou 17
anos.
|
Vulgata |
Daí saiu a Vulgata, a Bíblia latina, que até hoje é o texto oficial da
Igreja Católica. Essa é a Bíblia que todo mundo conhece. “A Vulgata foi o
alicerce da Igreja no Ocidente”, explica o padre Luigi. Ela é tão
influente, mas tão influente, que até seus erros de tradução se tornaram
clássicos. Ao traduzir uma passagem do Êxodo que descreve o semblante
do profeta Moisés, são Jerônimo escreveu em latim: cornuta esse facies
sua, ou seja, “sua face tinha chifres”. Esse detalhe esquisito foi
levado a sério por artistas como Michelangelo – sua famosa escultura
representando Moisés, hoje exposta no Vaticano, está ornada com dois
belos corninhos. Tudo porque Jerônimo tropeçou na palavra hebraica
karan, que pode significar tanto “chifre” quanto “raio de luz”. A
tradução correta está na Septuaginta: o profeta tinha o rosto iluminado,
e não chifrudo. Apesar de erros como esse, a Vulgata reinou absoluta ao
longo da Idade Média – durante séculos, não houve outras traduções.
O único jeito de disseminar o livro sagrado era copiá-lo à mão, tarefa
realizada pelos monges copistas. Eles raramente saíam dos mosteiros e
passavam a vida copiando e catalogando manuscritos antigos. Só que, às
vezes, também se metiam a fazer o papel de autores.
Após a queda do Império Romano, grande parte da literatura da
Antiguidade grega e romana se perdeu – foi graças ao trabalho dos monges
copistas que livros como a Ilíada e a Odisséia chegaram até nós. Mas
alguns deles eram meio malandros: costumavam interpolar textos nas
Escrituras Sagradas para agradar a reis e imperadores. No século 15, por
exemplo, monges espanhóis trocaram o termo “babilônios” por “infiéis”
no texto do Antigo Testamento – um truque para atacar os muçulmanos, que
disputavam com os espanhóis a posse da península Ibérica.
Escrituras em série
Tudo isso mudou após a invenção da imprensa, em 1455. Agora ninguém mais
dependia dos copistas para multiplicar os exemplares da Bíblia. Por
isso, o grande foco de mudanças no texto sagrado passou a ser outro: as
traduções.Em 1522, o pastor Martinho Lutero usou a imprensa para
divulgar em massa sua tradução da Bíblia, que tinha feito direto do
hebraico e do grego para o alemão. Era a primeira vez que o texto
sagrado era vertido numa língua moderna – e a nova versão trouxe várias
mudanças, que provocavam a Igreja (veja quadro na pág. 65). Logo depois
um britânico, William Tyndale, ousou traduzir a Bíblia para o inglês. No
Novo Testamento, ele traduziu a palavra ecclesia por “congregação”, em
vez de “igreja”, o termo preferido pelas traduções católicas. A mudança
nessa palavrinha era um desafio ao poder dos papas: como era
protestante, Tyndale tinha suas diferenças com a Igreja. Resultado? Ele
foi queimado como herege em 1536. Mas até hoje seu trabalho é referência
para as versões inglesas do livro sagrado.
A Bíblia chegou ao nosso idioma em 1753 – quando foi publicada sua
primeira tradução completa para o português, feita pelo protestante João
Ferreira de Almeida. Hoje, a tradução considerada oficial é a feita
pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e lançada em 2001.
Ela é considerada mais simples e coloquial que as traduções anteriores.
De lá para cá, a Bíblia ganhou o mundo e as línguas. Já foi vertida
para mais de 300 idiomas e continua um dos livros mais influentes do
mundo: todos os anos, são publicadas 11 milhões de cópias do texto
integral, e 14 milhões só do Novo Testamento.
Depois de tantos séculos de versões e contra-versões, ainda não há
consenso sobre a forma certa de traduzi-la. Alguns buscam traduções mais
próximas do sentido e da época original – como as passagens traduzidas
do hebraico pelo lingüista David Rosenberg na obra O Livro de J, de
1990. Outros acham que a Bíblia deve ser modernizada para atrair
leitores. O lingüista Eugene Nida, que verteu a Bíblia na década de
1960, chegou ao extremo de traduzir a palavra “sestércios”, a antiga
moeda romana, por “dólares”. Em 2008, duas versões igualmente ousadas
estão agitando as Escrituras: a Green Bible (“Bíblia Verde”, ainda sem
versão em português), que destaca 1 000 passagens relacionadas à
ecologia – como o momento em que Jó fala sobre os animais –, e a Bible
Illuminated (‘Bíblia Iluminada”, em inglês), com design ultramoderno e
fotos de celebridades como Nelson Mandela e Angelina Jolie.
A Bíblia se transforma, mas uma coisa não muda: cada pessoa, ou grupo de
pessoas, a interpreta de uma maneira diferente – às vezes, com
propósitos equivocados. Em pleno século 21, pastores fundamentalistas
tentam proibir o ensino da Teoria da Evolução nas escolas dos EUA, sendo
que a própria Igreja aceita as teorias de Darwin desde a década de
1950. Líderes como o pastor Jerry Falwell defendem o retorno da
escravidão e o apedrejamento de adúlteros, e no Oriente Médio rabinos
extremistas usam trechos da Torá para justificar a ocupação de terras
árabes. Por quê? Porque está na Bíblia, dizem os radicais. Não é nada
disso. Hoje, os principais estudiosos afirmam que a Bíblia não deve ser
lida como um manual de regras literais – e sim como o relato da jornada,
tortuosa e cheia de percalços, do ser humano em busca de Deus. Porque
esse é, afinal, o verdadeiro sentido dessa árvore de histórias regada há
3 mil anos por centenas de mãos, cabeças e corações humanos: a crença
num sentido transcendente da existência.
Top 5 pragas
I. Quando os hebreus eram escravos no Egito, o Senhor enviou 10 pragas
contra os opressores do povo escolhido. A primeira delas foi transformar
toda a água do país em sangue (Êxodo 7:21).
II. Como o faraó não libertava os hebreus, o Senhor radicalizou: matou,
numa só noite, todos os primogênitos do Egito. “E houve grande clamor no
país, pois não havia casa onde não houvesse um morto” (Êxodo 12:30).
III. Desgostoso com os pecados de Sodoma e Gomorra, Deus destruiu as
duas cidades com uma chuvarada de fogo e enxofre (Gênesis 19:24).
IV. Para punir as desobediências do rei Davi, o Senhor enviou uma
doença não identificada, que matou 70 mil homens e 200 mil mulheres e
crianças (2 Samuel, 24: 1-13).
V. Quando a nação dos filisteus roubou a arca da Aliança, onde estavam
guardados os 10 Mandamentos, o Senhor os castigou com um surto de
hemorróidas letais. “Os intestinos lhes saíam para fora e apodreciam” (1
Samuel 5:9) .
Os possíveis autores
1200 a.C. - Moisés
Segundo uma lenda judaica, a Torá (obra precursora da Bíblia) teria sido
escrita por ele. Mas há controvérsias, pois existe um trecho da Torá
que diz: “Moisés morreu e foi sepultado pelo Senhor próximo a Fegor”.
Ora, se Moisés é o autor do texto, como ele poderia ter relatado a
própria morte?
1000 a.C. - Javista
Viveu na corte do rei Davi, no antigo reino de Israel, e era um
aristocrata. Ou, quem sabe, uma aristocrata: para o crítico Harold
Bloom, Javista era mulher. Isso porque os personagens femininos da
Bíblia (Eva e Sara, por exemplo) são muito mais elaborados que os
masculinos.
Século 4 a.C. - Esdras
Líder religioso que reformou o judaísmo e possível editor do Pentateuco
(5 primeiros livros da Bíblia). Vários trechos bíblicos editados por ele
pregam a violência: “Derrubareis todos os altares dos povos que ides
expropriar, queimareis as casas, e mudareis os nomes desses lugares”.
Século 1 - Paulo
Nunca viu Cristo pessoalmente, mas foi o primeiro a escrever sobre ele.
Nascido na Turquia, Paulo viajou e fundou igrejas pelo Oriente Médio.
Ele escrevia cartas para essas igrejas, contando a incrível aventura de
um tal Jesus – que foi crucificado e ressuscitou.
Século 1 - Maria Madalena
Estava entre os discípulos favoritos de Jesus – e, diferentemente do que
o Vaticano sustentou durante séculos, nunca foi prostituta. Pelo
contrário: tinha influência no cristianismo e é a suposta autora do
Apócrifo de Maria, um livro em que fala sobre sua relação pessoal com
Jesus e divulga os ensinamentos dele.
Século 1 - João
Escreveu o 4o evangelho do Novo Testamento (João) e o Livro do
Apocalipse, o último da Bíblia. Para ele, Jesus não é apenas um messias –
é um ser sobrenatural, a própria encarnação de Deus. Essa interpretação
mística marca a ruptura definitiva entre judaísmo e fé cristã.
Século 5 - Jerônimo
Nascido no território da atual Hungria, este padre foi enviado a
Jerusalém com uma missão importantíssima: traduzir a Bíblia do grego
para o latim. Cometeu alguns erros, como dizer que o profeta Moisés
tinha chifres (uma confusão com a palavra hebraica karan, que na verdade
significa “raio de luz”).
Século 16 - William Tyndale
Possuir trechos da Bíblia em qualquer idioma que não fosse o latim era
crime. O professor Tyndale não quis nem saber, traduziu tudo para o
inglês, e acabou na fogueira. Mas seu trabalho foi incrivelmente
influente: é a base da chamada “Bíblia do Rei James”, até hoje a
tradução mais lida nos países de língua inglesa.
Top 5 matanças
I. Um grupo de meninos malcriados zombou da calvície do profeta Eliseu.
Pra quê! Na hora, dois ursos famintos saíram de um bosque e comeram as
crianças (2 Reis 2:24).
II. Cercado por um exército de filisteus, o herói Sansão apanhou a
mandíbula de um jumento morto. Usando o osso como arma, ele massacrou
mil inimigos (Juízes, 15:16).
III. O profeta Elias convidou os sacerdotes do deus Baal para uma
competição de orações. Era uma armadilha: Elias incitou o povo, que
linchou os pagãos (1 Reis 18:40).
VI. Os judeus haviam perdido a fé e começaram a adorar um bezerro de
ouro. Moisés ficou furioso e mandou sacerdotes levitas matar 3 mil
infiéis (Êxodo 32:19).
V. A nação dos amalequitas disputava o território de Canaã com os
judeus. O Senhor ordena que todos os amalequitas sejam chacinados (1
Samuel 15:18).
Top 5 satanagens
I. Após a destruição de Sodoma, os únicos sobreviventes eram Ló e suas
duas filhas. As filhas de Lot embebedaram o pai e tiveram com ele a
noite mais incestuosa da Bíblia (Gênesis 19:31).
II. O Cântico dos Cânticos, atribuído ao rei Salomão, é altamente
erótico. Um dos trechos: “Teu corpo é como a palmeira, e teus seios,
como cachos de uvas” (Cânticos 7:7).
III. Os anjos do Senhor tiveram chamegos ilícitos com mulheres mortais.
“Vendo os Filhos de Deus que as filhas dos homens eram formosas,
tomaram-nas como mulheres, tantas quanto desejaram” (Gênesis 6:2).
IV. A Bíblia diz que os antigos egípcios eram muito bem-dotados. Após a
fuga para Canaã, a judia Ooliba tem saudades dos tempos em que se
prostituía no Egito. Tudo porque “seus amantes (...) ejaculavam como
cavalos” (Ezequiel 23:20).
V. O hebreu Onã casou com a viúva de seu irmão, mas não conseguia fazer
sexo com ela – preferia o prazer solitário. Do nome dele vem o termo
“onanismo”, que significa masturbação (Gênesis 38:9).
As história da história
Como o livro sagrado evoluiu ao longo dos tempos
Tanach - Século 5 a.C.
É a Bíblia judaica, e tem 3 livros: Torá (palavra hebraica que significa
“lei”), Nebiim (“profetas”) e Ketuvim (“escritos”). É parecida com a
Bíblia atual, pois os católicos copiaram seus escritos. Contém as
sementes do monoteísmo e da ética religiosa, mas também pregações de
violência. A primeira das bíblias tem trechos ambíguos e misteriosos –
algumas passagens dão a entender que Javé não é o único deus do
Universo.
Septuaginta - Século 3 a.C.
O Oriente Médio era dominado pelos gregos e pelos macedônios. Muitos
judeus viviam em cidades de cultura grega, como Alexandria, e desejavam
adaptar sua religião aos novos tempos. Diz a lenda que Ptolomeu, rei do
Egito, reuniu um grupo de 72 sábios judeus para traduzir a Tanach – e
fizeram tudo em 72 dias. Por isso, o resultado é conhecido como
Septuaginta. Inclui textos que não constam da Tanach.
Novo Testamento - Século 1
A língua do Antigo Testamento é o hebraico, mas o Novo Testamento foi
escrito num dialeto grego chamado coiné. Contém os relatos sobre vida,
milagres, morte e ressurreição de Jesus – os evangelhos. Em alguns
trechos, vai deixando evidente a divergência entre cristianismo e
judaísmo. É o caso, por exemplo, do Evangelho de João, em que Jesus é
descrito como uma encarnação de Deus (coisa na qual os judeus não
acreditavam).
Católica - Século 4
Seus autores decidiram incluir 7 livros que os judeus não reconheciam.
São os chamados Deuterocanônicos: Tobias, Judite, Sabedoria,
Eclesiástico, Baruque, Macabeus 1 e 2 (mais trechos dos livros Daniel e
Ester). A Bíblia católica bate na tecla do monoteísmo: a palavra
hebraica Elohim, usada na Tanach para designar a divindade, é o plural
de El, um deus cananeu. Mas foi traduzida no singular e virou “Senhor”.
Ortodoxa - Por volta do século 4
É baseada na Septuaginta, mas também inclui livros considerados
apócrifos por católicos e protestantes: Esdras 1, Macabeus 3 e 4 e o
Salmo 151. A tradução é mais exata (nesta Bíblia, Moisés nunca teve
chifres, um erro de tradução introduzido pela Bíblia latina), e os
escritos não são levados ao pé da letra: para os ortodoxos, o que conta
são as interpretações do texto bíblico, feitas por teólogos ao longo dos
séculos.
Protestante - Século 16
Ao traduzir a Bíblia para o alemão, Martinho Lutero excluiu os livros
Deuterocanônicos e mudou algumas coisas. Um exemplo é a palavra grega
metanoia, que na Bíblia católica significa “fazer penitência” – uma
referência à confissão dos pecados, um dos sacramentos católicos. Já
Lutero traduziu metanoia como “reviravolta”. Para ele, confessar os
pecados era inútil. O importante era transformar a vida pela fé.
Top 5 milagres
I. O maior de todos os milagres divinos foi o primeiro: a Criação do
mundo, pelo poder da palavra. “E Deus disse: que haja luz. E houve luz”
(Gênesis 1:3).
II. Para dar-lhe uma amostra de seus poderes, o Senhor leva Ezequiel a
um campo cheio de esqueletos – e os traz de volta à vida. “O vento do
Senhor soprou neles, e viveram” (Ezequiel, 37; 1-28).
III. Graças à benção divina, o herói Sansão tinha a força de muitos
homens. Certa vez, foi atacado por um leão. “O espírito do Senhor
deu-lhe poder, e Sansão destroçou a fera com as próprias mãos, como se
matasse um cabrito” (Juízes 14:6).
IV. Josué liderava uma batalha contra os amalequitas, mas o Sol estava
se pondo. Como não queria lutar no escuro, o hebreu pediu ajuda divina –
e o Sol ficou no céu (Josué 10:13).
V. Para fugir do Egito, os hebreus precisavam atravessar o mar Vermelho.
E não tinham navios. Moisés ergueu seu bastão e as águas do mar se
dividiram. Após a passagem dos hebreus, o profeta deixou que as ondas se
fechassem sobre os exércitos do faraó (Êxodo 14; 21-30).
UM DIA VOCE ESTARA DIANTE DO CRIADOR E VAI TER QUE ACEITAR QUE ELE É DEUS, ELE É O ALPHA E O OMEGA.
ResponderExcluirA SABEDORIA DOS SÁBIOS DA TERRA, NÃO É NADA PARA ELE. E VOCE NÃO PASSA DE UM SIMPLES MORTAL.
ai eu farei apenas uma pergunta ao seu deus .
ResponderExcluirAONDE ele estava qd criou tudo pois se estarei diante dele alguma forma ele deve ter correto . aonde o mesmo estava qd fez tudo ..
nao vou nem entrar no conceito de quem o fez e se ele se fez sozinho . porque não apareceu mais seres iguais a ele ?
ou sera que apareceu ?
Ó ateu, as suas perguntas só podem ser respondidas pelo próprio Ser Supremo. Mas se tudo foi criado por Ele, é claro que Ele existia no espaço vazio. Sendo um Ser Espiritual, não precisa de terreno ou uma cadeira para apoiar-se. Correto este raciocínio? Ass. Oliveira Cearense. Fortaleza, 6 de maio de 2022.
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